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REFLETINDO SOBRE ALGUMAS DAS INTERESSANTES TRANSGRESSÕES DA OBRA DE FREIRE1

José Pedro Amorim

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Centro de Investigação e Intervenção Educativas e Instituto Paulo Freire de Portugal

Luiza Cortesão

Universidade do Porto, Centro de Investigação e Intervenção Educativas e Instituto Paulo Freire de Portugal


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S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

1 – Este trabalho foi financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do funcionamento atribuído ao CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas (projetos com as referências UID/CED/00167/2019, UID/00167/2020 e UIDP/00167/2020).

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DATA DE RECEÇÃO:

INVESTIGADORES CONVID ADOS


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S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Debruçando-se sobre a ambiguidade do conceito de transgressão, o texto discute alguns aspetos da obra de Paulo Freire que, para além de fascinantes e corajosos, são claramente transgressivos em relação a normas, habitualmente aceites, no campo mais tradicional da Ciência. Esses aspetos, aliás, conferem ao seu trabalho características de uma atualidade surpreendente. A politicidade da educação e a articulação entre Cristo e Marx são apresentadas como exemplos de transgressão na obra de Freire – e o conceito de Páscoa é caraterizado como ilustração desta segunda transgressão. A Páscoa, como Freire a descreve, compreende uma dialética inseparável e transgressiva entre a indispensável natureza política da educação e a igualmente indispensável espiritualidade que lhe está associada, e à qual ela procura também conduzir.


Transgressões em Paulo Freire

Se procurarmos consultar um dicionário da língua

portuguesa para ver o significado da palavra “transgressão”, ou se formos verificar os sinónimos desta palavra, facilmente descobriremos que não são elogiosos os sentidos que aí lhe estão atribuídos. Ela surge como significando “delito” de “desobediência” ou ainda de “infração”, ou descrita de uma forma claramente depreciativa, como significando “deixar de cumprir”, de “desobedecer”, etc. E, no entanto, basta refletir um pouco para se ter de admitir que, muito frequentemente, se, como diz o poeta, é com sonho que “o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança” (Gedeão, 2001, p. 29), sabemos bem que é também com trabalho pessoal ou coletivo, com persistência, esforço e coragem, que, às vezes, é possível quebrar regras, tácita ou submissamente aceites, e lutar por algo que será diferente, e que se pensa ser melhor. Está- se, portanto, a defender que será com pequenas ou grandes transgressões que, muito frequentemente, a mudança acontece, e acontece, muitas vezes, com riscos e até com sofrimentos daqueles que, de diferentes modos, estão envolvidos nestes processos.

E, note-se, estas situações podem ocorrer em todos os campos da atividade humana. Sucedem em pequenas e grandes lutas, em muito diversas áreas. Por exemplo, no campo artístico: não é verdade ter acontecido que um conjunto de obras de, por exemplo, Picasso, Chagall, Klee, Kandinsky e muitos outros, foi reunido numa exposição aberta ao público, cujo título era de “Arte Degenerada”? E sabe-se que foram ali reunidas porque eram obras que ousavam não obedecer às regras que os nazis definiam como sendo as que descreviam a “verdadeira” arte, a arte “de qualidade”. Não é também verdade que Copérnico foi silenciado, e que Galileu foi julgado duas vezes (e condenado) pela Santa Inquisição, por apoiar e desenvolver a teoria heliocêntrica de Copérnico? Não consta, também, que Sallieri terá aconselhado o Rei a comentar depreciativamente uma obra de Mozart, dizendo que tinha “notas a mais”? Não é também verdade que, há muito pouco tempo, no Irão, foi morta uma jovem, só porque não usava o véu da forma que o poder desse país considera ser a “correta”? Podemos então verificar que, em contextos anteriores, e mesmo no mundo em que atualmente vivemos, ocorreram e ocorrem situações semelhantes, só porque são vistas por uns como situações ameaçadoras, desafiantes, portanto consideradas inaceitáveis e, no entanto, defendidas, por outros, que as consideram verdadeiras, importantes, mesmo urgentes.

É interessante atentar às palavras que Fals Borda escreveu num texto a que deu o título “Subversão justificada e sua importância histórica”. E o texto é este:

São muitas as palavras que, tal como a tintura de tornesol, tomam uma cor diferente, conforme o ângulo como são olhadas, especialmente quando são vistas à luz de circunstâncias históricas em mudança: violência, justiça, liberdade, utilidade pública, revolução, heresia, subversão. Percebe-se que são conceitos enraizados nas emoções, que ferem crenças e atitudes, e que levam a tomar um lado definido. (Fals Borda, 2009, p. 387, tradução nossa)


A obra de Paulo Freire constitui um brilhante exemplo de um trabalho que, desenvolvendo-se em contextos das Ciências Humanas, ousou questionar e perturbar o campo epistémico, desafiando também limites tradicionalmente estabelecidos e aceites entre diferentes ciências. E Paulo Freire fê-lo, na sua qualidade de lutador “sentipensante”, como lhe chamaria Fals Borda (2009), um lutador pela dignidade humana. Num trabalho anterior (Cortesão,

2017), descrevia-se Paulo Freire dizendo: Profundamente comprometido com o [alívio do] sofrimento humano, imerso em lutas contra problemas que afetam grupos sociais oprimidos, Paulo Freire levou bem longe, intencional e explicitamente, várias transgressões às regras estabelecidas não só pelas ciências duras, mas também por uma organização social e política que sentia ser injusta. Esta situação veio aliás a contribuir para que a sua obra adquirisse uma extraordinária originalidade e atualidade (Cortesão, 2017, p. 138)


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  1. – A frase citada foi proferida por Freire numa entrevista gravada em 1997.

    Politicidade da

    educação

    “Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que [amou] profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida.” (Freire, 20161, p. 399), disse alguém que, como Paulo Freire, é mundialmente conhecido pela sua obra e pela sua luta pela preservação da dignidade e da qualidade de vida de todos os seres humanos. E, realmente, ser alguém que, como Freire, tem um reconhecimento e um estatuto ímpar no mundo da Ciência, alguém a quem foram atribuídos mais de quarenta doutoramentos Honoris Causa, que é um dos três autores mais citados no campo das Ciências Humanas, e que ousa falar de amor como aquilo que o valoriza e que lhe é tão significativo, é, só por si, um ato epistemologicamente transgressivo de grande repercussão, pois que representa uma clara ultrapassagem de fronteiras tanto tempo impostas e respeitadas entre os afetos e o mundo tradicionalmente considerado como sendo o da “verdadeira Ciência”. E porque, para Freire, o trabalho educativo se enriquece com a consciência da importância das emoções, dos afetos, da implicação nas lutas travadas e de escuta atenta ao outro, é tendo consciência destas características que a educação constitui, não só um campo de batalhas a travar, mas também um instrumento de luta ao lado dos oprimidos.

    INVESTIGADORES CONVID ADOS

    Assim sendo, a denúncia, quer da frequente inconsciência da natureza política de todo o ato educativo, quer da intencional ocultação, mesmo da negação de tal característica, essa denúncia é um dos maisimportantesetransgressivoscontributosde Freire para que fosse reconhecida a importância da educação como possível instrumento de intervenção social. É que, como é bem sabido, a importância, mesmo a exigência de uma “neutralidade” da educação, até tem sido defendida explícita ou implicitamente, e mesmo inculcada, quer historicamente, quer na atualidade, sobretudo por aqueles que dela se servem para a manipularem, ocultamente. Recorde-se, por exemplo, como, no Brasil, muito recentemente se desenvolveram campanhas em defesa da chamada “escola sem partido”, ocultando, portanto, que, ao trabalhar de acordo com esta decisão oficial, isto significaria que a escola iria ser objeto das orientações

    S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

    políticas exclusivas de um partido, o partido então no poder. Recorde-se também, e ainda só como exemplo, uma frase que foi escrita, em tempos, por António de Oliveira Salazar, em Educação Nacional, de 19 de maio de 1935. Nesse texto, Salazar advertia: “Se todos souberem ler e escrever, a instrução desvaloriza-se”. Porque a educação constitui, para Freire, não só um campo de batalha, como instrumento de luta ao lado dos oprimidos, a denúncia quer dos perigos da não consciência, quer a ocultação, ou mesmo negação da natureza política de todo o trabalho neste campo, constitui um dos seus mais transgressivos contributos. Assim sendo, Freire, que foi alguém que, como é bem conhecido, dedicou sua mais divulgada obra (A Pedagogia do Oprimido) “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.” (Freire, 1972, p. 27), defende frequentemente a importância que atribui à consciência da politicidade de todo o ato educativo. Recorde-se, por exemplo (e, também, só a título de exemplo), que ele afirma em “Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra”: “fazer opções é muito importante. Os educadores devem indagar-se para quem e em benefício de quem estão trabalhando” (Freire & Macedo, 1990, p. 114). E um bem conhecido acontecimento ocorrido na sua própria vida constitui outro evidente testemunho de como a educação, neste caso, do processo de alfabetização tem inegáveis significados e efeitos políticos: recorde-se que a possibilidade de o projeto de alfabetização, experimentado em Angicos, vir a ser desenvolvido num Plano Nacional de Alfabetização, teve como resultado que, por ser autor do projeto, Freire tenha sido preso e, na sequência, tenha partido para o exílio. É que o regime ditatorial de direita, que, entretanto, se instalara no Brasil, não poderia arriscar que, com aquele plano em funcionamento, uma grande quantidade de trabalhadores adultos passassem a poder votar e que, também conscientizados, tivessem desenvolvido alguma capacidade de escolha em quem votar. É bem evidente que, em contextos de ditadura, com populações oprimidas, e em más condições de vida, o poder instituído teme o risco de lidar com aqueles que tenham ou possam vir a ter uma educação esclarecedora.

    Aliás, a forma politicamente informada, critica e lúcida como Freire se refere à existência de uma tão elevada incidência de analfabetismo, está claramente expressa em diversos textos seus em que, por


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  2. – O excerto citado é de 1968.

    exemplo, defende, explicitamente, a importância de se perceber que o analfabetismo constitui um sintoma da existência de graves problemas sociais e políticos que considera ser necessário combater:

    Para a concepção crítica, o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem uma “erva daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente linguístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político [...]. Proclamar sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca. (Freire, 20012, p. 18)


    E, mais tarde, mas ainda no mesmo texto de 1968, acrescenta:

    É necessário, na verdade, reconhecer que o analfabetismo não é em si um freio original. Resulta de um freio anterior e passa a tornar-se freio. Ninguém é analfabeto por eleição, mas como consequência das condições objetivas em que se encontra. (Freire, 2001, p. 22)


    No mesmo livro, “Ação cultural para a liberdade e outros escritos”, mas desta vez num texto de 1970, Freire conclui:

    Seria na verdade uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira critica. (Freire, 2001, p. 104)


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    Cristo e Marx

    Parece-nos que a articulação dialética entre Cristo e Marx pode ser uma das transgressões mais significativas de Freire. Desde logo porque os “seguidores” de ambos não nutrem propriamente uma admiração recíproca. Uns são “mais cristãos do que Cristo, como alguns marxistas mais marxistas que Marx” (Freire, 2016, p. 99). Mas é uma proposta transgressiva, também, porque este diálogo implica a imbricação de termos científicos, políticos, pedagógicos, com vocábulos afetivos (amorosidade, esperança) e até de pendor espiritual (para não dizer religioso): fé, transcendentalidade, profetismo, messianismo, Páscoa, comunhão, “ser infinito” (Freire, 2002, p. 31).

    Freire trabalha esta transgressiva articulação entre Cristo e Marx, conseguindo não só preservar as identidades de ambos, mas sobretudo fazendo-as dialogar frontalmente. Por exemplo, este tema emerge na última entrevista concedida pelo autor, no dia 17 de abril de 1997. Nessa conversa, diz Freire (19973):

    Quando muito moço, muito jovem, eu fui aos mangues do Recife, aos córregos do Recife, aos morros do Recife, às zonas rurais de Pernambuco, trabalhar com os camponeses, com as camponesas, com os favelados, eu confesso sem nenhuma choromingas (sic), eu confesso que fui até lá movido… movido por uma certa lealdade ao Cristo com quem eu… de quem eu era mais ou menos camarada. Mas o que acontece é que, quando eu chego lá, a realidade dura do favelado, a realidade dura do camponês, a negação da… a negação do seu ser como gente, a tendência àquela adaptação de que a gente falou antes, aquele estado quase inerte diante da negação da liberdade. Aquilo tudo me remeteu a Marx. Eu sempre digo, não foram os camponeses que disseram a mim: ‘Paulo, tu já leste Marx?’ Não [sorri], eles não liam nem jornal. Foi a realidade deles que me remeteu a Marx. E eu fui… eu fui a Marx e aí é que os jornalistas europeus, em 70, não entenderam a minha afirmação. É que quanto mais… quanto mais eu li Marx, tanto mais eu encontrei uma certa fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo.


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  3. – Cf. https://www.youtube.com/watch?v=fBXFV4Jx6Y8, a partir do minuto 6:17.

    Então, as leituras que eu fiz de Marx, de alongamentos de Marx, não… não… não me sugeriram jamais que eu deixasse de encontrar Cristo na esquina das próprias favelas. Eu fiquei com Marx na mundanidade à procura de Cristo na transcendentalidade. [transcrição nossa]


    E porque, em Freire, a complexidade está presente em textos simultaneamente corajosos, complexos, muitas vezes poéticos, é necessário lê-lo com atenção, devagar, lendo de novo, porque sempre se descobrem ideias novas, ousadas, mas importantes. Este é o caso, por exemplo, do significado profundo do conceito de Páscoa, tal como Freire (20014, p. 109) o descreve. É um conceito que ilustra bem esta articulação transgressiva entre Marx e Cristo, entre a politicidade e a espiritualidade.


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    Páscoa

    De acordo com Freire (2001, p. 109), a educação libertadora só pode acontecer se o educador, ou a educadora, “viver a profunda significação da Páscoa.” Trata-se de um termo com um cariz religioso evidente. Uma nova consulta do dicionário permite verificar que a Páscoa é a “festa anual dos Judeus, em memória da sua saída do Egito, celebrada a 14 de nisã”, bem como a “festa anual dos Cristãos para comemorar a ressurreição de Jesus Cristo, celebrada no primeiro domingo após a lua cheia seguinte ao equinócio de março, podendo ocorrer entre 22 de março e 25 de abril”.5

    Segundo Paulo Freire, a Páscoa implica uma “‘morte’ mútua e [um] mútuo ‘renascimento’” (Freire, 2001, p. 108), isto é, o educador tem de “morrer” enquanto educador de educandos e “renascer” como educador- educando de educandos, que, por sua vez, são incentivados a morrer como educandos da pessoa educadora e renascer como educandos-educadores do educador-educando (Freire, 2001, p. 108).

    É muito significativo o facto de Freire evocar a “morte” (e sempre criticando uma visão necrófila sobre a educação) como necessária a uma nova


  4. – Os excertos citados são de um texto de 1970, intitulado “O processo da alfabetização política – uma introdução”.


    INVESTIGADORES CONVID ADOS

  5. – Cf. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/páscoa, em 23.11.2022.

    vida, à “ressurreição”, à biofilia. Que esta “morte” implica romper processos, conceções e emoções que estão profundamente enraizadas, com as quais crescemos e às quais aderimos, a ponto de se tornarem presença constante e simultânea e frequentemente inconsciente. É isto que acontece relativamente ao modo como nos vemos e nos comportamos enquanto educadoras/es e educandas/os.

    É muito interessante também a natureza coletiva6 desta “ressurreição”. Na verdade, nem a pessoa educadora nem a pessoa educanda renascem sozinhas. A Páscoa é mútua, pelo que o/a educador/a só renasce se produzir o renascimento do educando/a.

    A Páscoa implica então, e segundo Freire,“transcender o tradicionalismo monótono, arrogante e elitista, segundo o qual o professor tudo sabe e o aluno não sabe nada.” (Freire & Macedo, 1990, p. 111). Implica morrer como educador bancário, desumanizador, necrófilo, domesticador, e renascer como educador problematizador, humanizador, biófilo, libertador (Freire, 1972).

    Esta Páscoa tem uma natureza política que não pode ser esquecida. Freire chega a assumir a sinonímia deste conceito com o de “suicídio de classe” proposto por Amílcar Cabral (Freire, 2007, p. 138). Mas vai além disso, porque a Páscoa não se restringe a questões de classe. Em “Cartas a Cristina”, Freire mostra que ela é necessária em relação a toda a forma de opressão, antidemocrática, reacionária. São exemplo a violência de género e o racismo:

    Não há sombra de dúvida de que a fim de o professor racista, de o professor machista, de o professor elitista, que falam de democracia e se dizem progressistas, poderem realmente comprometer-se com a liberdade, é preciso que façam sua ‘páscoa’: que ‘morram’ como machista, como racista, como elitista para ‘renascer’ como verdadeiros progressistas, inscritos na luta de reinvenção do mundo. (Freire, 2015, p. 257)


    Freire disse, num outro texto (Freire, 2000, p. 68), que o ser humano não nasce racista. Aprende a ser assim – com uma muito significativa influência do sistema capitalista em que vivemos. Também não nascemos elitistas, machistas, opressores. Aprendemos a sê-lo. Assim como podemos aprender a ser de outra forma. Sem esta crença na vocação do “ser mais”, restaria o cinismo e o desespero (Freire, 1972, p. 41), como se verá adiante.

    Disse-se antes que este conceito de Páscoa era um exemplo muito interessante da articulação transgressiva que Freire faz, e constitui, entre Cristo e Marx. Quando diz que o educador “bancário” tem de morrer, está subjacente uma denúncia clara da“forma dissimulada, enganadoramente neutral” (Cortesão, 2017, p. 140), mas muito frequente, como a educação contribui para a dominação, a manutenção do statu quo, a opressão de “minorias” – uma designação que o próprio Freire questionou, na medida em que a verdadeira minoria, em termos numéricos, é a elite dominante (Freire, 1999). Com esta denúncia, Freire pode enquadrar-se numa linha teórica da sociologia da reprodução, de inspiração visivelmente marxista. São exemplo, entre muitos outros, os trabalhos de Louis Althusser (1970), Christian Baudelot e Roger Establet (1971), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1970). Vai, porém, além dos limites desse enquadramento, em nova transgressão, como evidencia a vivacidade com que Freire procurou sempre ir além da denúncia, enfatizando a indispensabilidade do anúncio.

    […] também transgressivamente, não se limitando a analisar e denunciar este problema, [Freire] identificou, imaginou e experimentou formas de contribuir para que, através de processos educativos, os próprios grupos oprimidos [despertassem, tomassem] consciência da opressão a que estão sujeitos e [desenvolvessem] a possibilidade de se lhes oporem, num processo para o qual adotou o termo de “conscientização”. (Cortesão, 2017, p. 140)


    Esta dialética constituída pela denúncia e pelo anúncio evidencia algo essencial na proposta de Freire: a denúncia sem anúncio agudiza o sofrimento das pessoas oprimidas e contribui para reforçar o seu fatalismo, a incapacidade percebida de alterar a situação de opressão. Mas o anúncio sem denúncia não faz sentido, porque constitui uma promessa vazia, construída sobre realidade nenhuma – no sentido pejorativo que a palavra “utopia” adquiriu, mas muito diferente daquele que lhe foi atribuído por Thomas More (Moro, 1516/1947), que é o de lugar que ainda não existe, mas que não é impossível de ser criado.

    Esta é uma ideia corroborada por Agostinho da Silva, quando, em determinado momento das Conversas Vadias, diz:

    Quando as pessoas dizem que eu sou utópico, […] primeiro não sabem português, julgam que utópico


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  6. – Para um aprofundamento da importância do coletivo na proposta de Freire, ver Amorim e Cortesão (2021).

    quer dizer impossível, quando utópico só quer dizer que ainda não há em lugar nenhum, não quer dizer mais nada. (Agostinho da Silva, 1990)7


    É essa ideia fundamental que compõe, de resto, o conceito de “inédito viável”, enquanto algo que não existe, ainda, mas que pode ser criado. Segundo Freire, a utopia é vital para a educação como prática de liberdade.

    A conscientização nos convida a assumir uma posição utópica frente ao mundo, posição esta que converte o conscientizado em “fator utópico”. Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico. (Freire, 1980, p. 27)


    A proposta de Freire é eivada de uma crença otimista, realmente utópica, no ser humano, no poder da educação com vista à vocação ontológica do “ser mais” e na transformação da sociedade. É difícil, por vezes, reconhecer em cada pessoa esta “vocação”. Existem no mundo exemplos vários que podem reforçar uma visão pessimista. Mas a desumanização é, segundo Freire, “distorção da vocação” e não “vocação histórica”, que só o “ser mais” constitui (Freire, 1972, p. 14). Então, sem este otimismo – que, em Freire, nada tinha de ingénuo –, a educação não faz muito sentido. Se não se acreditar que ela tem o poder, ainda que condicionado, de transformar e de aperfeiçoar o ser humano e a sociedade, educa-se para quê? A favor de quê e de quem?

    Freire não faz sentido se não se tentar apreender a sua proposta na sua extraordinária complexidade. São várias as dialéticas, as tensões e as transgressões que a sua obra contém. Neste texto, procura mostrar- se que não é possível perceber Freire sem considerar a natureza política da sua proposta. Dito de outro modo: Freire perde sentido e consistência teórica se se valorizar apenas a sua visão da transcendentalidade, o uso de vocábulos espirituais, religiosos… É o que acontece se se reproduzir apenas vocábulos como “amorosidade”, “esperança”, “Páscoa”… São todos aspetos essenciais da obra de Freire, mas que fazem parte de um conjunto. Isolados, não passam de chavões. O mesmo acontece se se circunscrever Freire

    à esfera política. Ela é indispensável, claro, mas não de forma isolada. O objetivo de Freire é a libertação terrena – e, já agora, não apenas do oprimido, mas também do opressor (Freire, 1972) – com vista também à “salvação”. Mundanidade e transcendentalidade, politicidade e espiritualidade, numa dialética inseparável e transgressiva.


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    INVESTIGADORES CONVID ADOS

  7. – Cf. https://www.youtube.com/watch?v=C85zv6Ocr0Y&list=PL49FA7559A0524FEE&index=9, a partir do minuto 22:20.

Referências Bibliográficas


Althusser, L. (1970). Idéologie et appareils idéologiques d’état. La Pensée, 151, 3-38.

Amorim, J. P. & Cortesão, L. (2021). Ninguém pode “ser mais” sozinho: há espaço para o individual na pedagogia coletiva de Paulo Freire? In L. Cortesão & J. P. Amorim (Eds.), Novos contributos para a leitura da obra de Paulo Freire/Novos tributos a Paulo Freire (pp. 121-140). Afrontamento.

Baudelot, C. & Establet, R. (1971). L’école capitaliste en France. Maspero.

Bourdieu, P. & Passeron, J.-C. (1970). La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement. Minuit.

Cortesão, L. (2017). Transgressões em Paulo Freire. In

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A. S. Neto & I. Fortunato (Eds.), 20 anos sem Paulo Freire: trajetórias de sua pedagogia libertária (pp. 132- 147). Hipótese.

Fals Borda, O. (2009). Una sociologia sentipensante para a América Latina. CLACSO.

Freire, P. (1972). Pedagogia do oprimido. Afrontamento.

Freire, P. (1980). Conscientização. Teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire, (3.ª ed.). Moraes.

Freire, P. (1999). Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido, (6.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, P. (2000). À sombra desta mangueira, (3.ª ed.).

Olho d’Água.

Freire, P. (2001). Ação cultural para a liberdade e outros escritos, (9.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, P. (2002). Educação e mudança, (26.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, Paulo (2007). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, (35.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, P. (2015). Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, (2.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, P. (2016). Pedagogia da tolerância, (5.ª ed.). Paz e Terra.

Freire, P. & Macedo, D. (1990). Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Paz e Terra.

Gedeão, A. (2001). Obra poética. João Sá da Costa.

Moro, T. (1516/1947). A Utopia ou o Tratado da melhor forma de governo. Cosmos.

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