O TRABALHO EDUCATIVO COMO UM PROCESSO PROFÉTICO DE LIBERTAÇÃO
A PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE À LUZ DE DESAFIOS FUNDAMENTAIS DA
SOCIEDADE GLOBAL1
Dirk Oesselmann
EH-Freiburg
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S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
1 – Este artigo foi publicado em alemão de forma modificada, no ano de 2021, sob o título: Bildungsarbeit als prophetisch-befreiender Prozess. Religiös-spirituelle Spu- ren in der Pädagogik Paulo Freires im Licht grundlegender Herausforderungen in der globalen Gesellschaft. In T. Böhme, B. Kappelhoff, J. Ta Van (eds.): Zur Zukunft religiöser Bildung in Europa. Waxmann, pp. 55-67
Resumo:
Neste artigo, efetua-se uma abordagem ao pensamento do pedagogo Paulo Freire, a partir da perspetiva dos atuais desafios de uma sociedade globalizada. O ponto de partida é a demanda por uma “grande transformação”, que leve a uma mudança na autocompreensão dos indivíduos, bem como a um novo tipo de convivência pessoal e estrutural. Na pedagogia da libertação de Freire, os aspetos que anunciam o novo e, assim, sustentam os processos de transformação, são retomados sob este prisma. O autor identifica traços de uma busca pelo que constitui e sustenta fundamentalmente o ser humano, o tema central das religiões e da espiritualidade.
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INVESTIGADORES CONVID ADOS
DATA DE RECEÇÃO: 2022/11/14
Abstract:
This article reads the educator Paulo Freire from the perspective of the current challenges of a globalised society. The starting point is the demand for a “great transformation” that leads to a changed self- understanding of individuals as well as to a new kind of personal and structural coexistence. In Freire’s liberation pedagogy, the aspects that herald the new and thus underpin transformation processes are taken up from this perspective. The author identifies traces of a search for what constitutes and fundamentally sustains human beings - the central topic of religions and spirituality.
Pontos
de partida das reflexões
Paulo Freire entendeu a educação também como um ato profético. Foi dessa forma, inclusive, que ele in- troduziu o 1º Congresso de Alfabetização, em São Pau- lo, em 1990: “Somos como educadores-profetas: olha- mos para o caos e descobrimos a utopia”.(Graciani, 1996, pp. 34-35) – Mas porquê a inquietação em utilizar esta imagem linguística como ponto de partida para o artigo abaixo?
No presente artigo, não se trata da atitude de Paulo Freire em relação à igreja, não se procura provas da sua fé. As explanações também não podem nem de- vem ser apropriadas por uma manifestação religiosa específica. Procura-se, no entanto, uma aproximação aos elementos de interpretação e da forma de encarar a vida: sobre imagens fundantes do ser humano e do mundo, sobre atitudes e posturas que nelas se consti- tuem, projeções e perspetivas de vida, utopias e, por fim, a fonte em que tudo isso se nutre. Lidar com os problemas atuais de uma sociedade global – desde a pobreza à exclusão de grande parte da humanidade e à mudança climática – requer, além de uma postura política, uma aquisição do conhecimento das respe- tivas causas e consequências. No seu relatório final, o Conselho Consultivo sobre Mudanças Globais (Wis- senschaftlicher Beirat der Bundesregierung Globale Umweltveränderungen – WBGU) do Governo Alemão propôs-se, já em 2011, um “novo contrato social global para uma ordem económica global sustentável “ (p. 2). Deste relatório consta, igualmente, uma “grande transformação“ (Schneidewind, 2018) da economia, da política e da ciência. As mudanças exigidas não são apenas estruturais ou uma questão de consciên- cia. Trata-se de desistir do que tem sido válido até ago- ra, de encorajar algo novo, de lidar de forma responsá- vel com a complexidade esmagadora das conexões glo- bais. A grande transformação é civilizacional, cultu- ral e religiosa: requer-se um tipo diferente de relacio- namento, uma conexão profunda com todo o sistema de vida e, sobretudo, um conceito de “boa vida”, a ser projetado conjuntamente. Tudo isto levanta questões relativas ao ser humano, tanto a nível individual e so- cial como da autocompreensão da humanidade. Neste
contexto, a educação deve questionar as orientações, pensar e moldar o curso de uma vida futura. Tudo isto aponta para as disposições e orientações do sentido de vida, ou seja, o tema central de religiões.
S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
Tendo em vista tais desafios com que o ser humano e a humanidade se confrontam, hoje, nos contextos glo- bais, as reflexões que a seguir se apresentam abordam novamente a pedagogia de Paulo Freire, perspetivan- do as suas posições e orientações fundantes, numa di- mensão “religioso-espiritual” do ser humano. Como mostra a citação inicial, o uso de tal designação em relação a Paulo Freire não é uma presunção ou uma apropriação. Pelo contrário, e esta é minha hipótese, representa uma espécie de pano de fundo, que desem- penha um papel central na orientação básica da sua pedagogia.
Esclarecimentos
A abordagem que aqui se faz requer um esclarecimento preliminar do próprio entendimento básico, através do emprego de conceitos centrais, fundamentais nestas reflexões: religião e espiritualidade.
Recuando à origem da palavra “religião“, diga-se que esta é entendida como um processo de busca do ser humano. As possíveis raízes em latim, “religare”, “religere” ou “relegere”, reconetar-se, ponderar, considerar com atenção, caraterizam as múltiplas lutas dos seres humanos para encontrar pilares básicos ao longo da vida. Entendida desta forma, a religião é, antes de tudo, uma expressão e um fórum de comunicação sobre os fundamentos da vida, que remetem para um sentido abrangente de significado. Questiona-se, assim, a origem e o objetivo da existência, na procura de referências incondicionais, do imprevisível, visando uma orientação de conceitos e significados morais universalmente válidos. Eilert Herms sintetiza este entendimento da religião como um processo de busca humana:
“A expressão ‘religião’ não denota nenhuma visão sobre um mundo sobrenatural, visões que se pode ou não apreciar, mas ‘religião’ denota o fato fundamental para a existência de cada pessoa finita, de que ela deve se relacionar com a origem e com o objetivo de sua existência, de que ela deve de alguma forma compreender esses limites de sua existência e levá-los em conta na condução de sua vida.” (1990, p. 30)
Deste modo, a religião é entendida como um fenómeno humano independente das tradições religiosas1 (Vasconcelos, 2009, p.324). Este fenómeno desenvolveu-se conforme as pessoas se comunicavam sobre experiências e questionamentos fundamentais. Com base nesta troca comunicativa, assim como em “revelações extraordinárias“, ao longo dos séculos, condensaram-se sistemas religiosos de doutrinas e práticas de salvação que, por sua vez, ofereceram linguagens e interpretações para os questionamentos e experiências das pessoas. Helmut Fischer descreve o processo da seguinte forma:
“Perguntas seriamente formuladas são fundamentalmente concebidas para uma resposta, na verdade elas mesmas já são o início de uma busca por uma resposta. Estas
perguntas abrem o horizonte e fornecem o impulso para a formação de um sistema coletivo de interpretação e resposta da comunidade lingüística que chamamos religiões. a
capacidade dada a cada ser humano de perguntar sobre sua vida em todo o seu mundo (pode ser chamada) ‘sua religiosidade’” (2017, p. 99).
Seguindo este amplo entendimento, a espiritualidade pode ser entendida como uma qualidade especial de vivenciar esta dimensão fundamental, na qual tudo flui, em simultâneo com uma compreensão central do significado da existência e se conecta com uma abrangência total. É frequentemente descrita como uma espécie de “experiência transpessoal ou mística de pico”, que dá às pessoas acesso emocional e compreensivo a uma definição abrangente de significado.
„… spirituality engages people in considering that they are part of something much bigger than themselves. … One´s spirituality connects one to a higher sense of purpose and being, and gives one´s life meaning.“ (Boyd, 2012, pp.763-764)
A partir dos seus estudos psicológicos, Abraham Maslow, designa tais experiências de “experiências de cume”, descrevendo-as como “um súbito tropeço no céu” (2010, p. 17), um “sentimento de que elas realmente tinham visto a verdade última, a essência das coisas, o mistério da vida, como se um véu tivesse sido colocado de lado” (2010, p.16) Mesmo que a espiritualidade não forneça respostas concretas como uma religião, nela é estabelecida uma base emocional para a religião ou religiosidade, através de uma experiência concreta. Esta base é crucial para que a religião ganhe vida. As experiências espirituais podem, assim, influenciar os motivos mais profundos da existência, como preconizam Chaves et al. (2016). Elas têm um efeito sobre as disposições fundamentais do ser humano, na medida em que sentimentos básicos, como relacionamento, pertença e confiança, são explorados a partir de uma referência que transcende a existência humana.
Centramo-nos, pois, numa compreensão de religião e espiritualidade constituídas como um fenómeno dentro da estrutura das experiências humanas básicas e dos questionamentos daí resultantes. Isto torna possível abordar o seu significado para a existência antes que religiões as interpretem no âmbito de doutrinas e regras (Fischer, p. 9)
INVESTIGADORES CONVID ADOS
1 – Eymard Mourao Vasconcelos também ressalta que somente analisando a religião independentemente de tradições específicas é possível analisar o seu profundo significado para os processos pedagógicos.
Traços religiosos-
-espirituais
numa pedagogia libertadora
S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
Deve perguntar-se por que uma referência à religião e à espiritualidade é significativo para uma pedagogia libertadora. Mesmo que Paulo Freire tenha proferido poucos discursos explícitos sobre religião, ou mesmo sobre espiritualidade, a elas existem várias referên- cias, como tem sido observado com frequência na abordagem de sua pedagogia. É certo que Freire cres- ceu com as tradições da Igreja Católica. Mas, no decor- rer do tempo, desenvolveu uma posição crítica face às tendências autoritárias, antipolíticas e anti-mundis- tas dentro da igreja. Ele foi atraído pelos grupos social e politicamente ativos que formaram o fundamento para as comunidades de base e as pastorais que sur- giram na América Latina, em meados do século XX, e exerceram grande influência, sobretudo na Igreja Católica, mas também além dela (Dullo, 2014, pp. 49- 61), a proximidade de muitos dos seus pensamentos à teologia da libertação, também deriva, sem dúvida, do bom contacto que Freire manteve com teólogos como Gustavo Gutierrez, Camilo Torres e Dom Helder Camara (Boyd, 2012, p. 769).
Uma análise mais profunda dos escritos de Paulo Freire evidencia que uma pedagogia da libertação não pode ser compreendida e implementada sem referência a processos substanciais de autoentendimento, orientação para o sentido e disposição esperançosa.
“Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir- se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criados, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a
`outredade´ do `não-eu´, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu“ (1996, p.41).
A pedagogia da libertação é uma pedagogia transformadora. Freire quer mudar, não apenas transmitir o que foi predefinido. Com efeito, o processo de aprendizagem é um processo de mudança, seja nas dimensões fundamentais da autoperceção humana seja na formação de relações na interação social, bem como no desenvolvimento histórico da sociedade.
Transformação holística: sistemas e autoimagens
A libertação pressupõe que as pessoas tenham que se desfazer de correntes que as condicionam. Elas não se sustentam num dado status, mas rompem com a sua atual situação em aspetos fundamentais e embarcam em algo novo e desconhecido. A libertação, no senti- do da teologia e da pedagogia da libertação, deve ser pensada numa perspetiva sistémica e holística, con- siderando quer as condições internas quer externas da vida, assim como de si mesmo como pessoa. Neste sentido, tange tanto as estruturas sociais quanto os valores e percepções de normalidade cultural e religio- sa que lhe são inerentes.
O sistema social define a estrutura social, política e económica. Contudo, a libertação implica uma mu- dança radical das diretrizes sociais de exclusão. Mas vai além disso. As pessoas socializaram-se nestas es- truturas e tiveram que se adaptar, ou melhor, foram adaptadas, por exemplo, através do tipo de educação escolar recebido. Aprenderam não apenas a preencher um determinado papel no sistema, mas também in- teriorizaram atribuições dadas que se tornaram ima- gens de si mesmas e da própria vida. Assim, a liber- tação também tem um componente mental de “estar-
-no-mundo“, como pessoas.
Subjacente a esta ideia está a perceção de que uma pessoa que cresceu na periferia social e é tratada como lixo, gradualmente se vai percebendo a si mesma como um “nada sem valor”, perdendo o sentimento da sua própria dignidade. A transferência das condições externas para as autoimagens torna-se uma forma de viver a sua vida. O resultado é frequentemente uma “cultura de silêncio”, como diz Paulo Freire, um fata- lismo coletivo, no qual os setores excluídos da popu- lação se resignam com a situação, sem lutar, porque não sentem nenhuma conexão com uma forma de vida diferente dentro de si mesmos.
Em distintas circunstâncias, a prisão mental também se aplica a pessoas que se encontram numa situação privilegiada dentro do sistema social. A pressão para se obter constantemente um desempenho extremo
e, assim, ser melhor do que outro e, ainda, a falta de orientação para se viver em coletividade, são apenas duas faces que ilustram que as circunstâncias sociais também deixam a sua marca em pessoas com posições socialmente privilegiadas.
Transcender as circunstâncias dadas
Uma educação entendida desta forma libertadora re- quer mudanças, tanto na profunda autocompreensão de si mesmo como através de ideias para perspetivar novos horizontes. Ambos os processos têm como obje- tivo transcender tudo que está estabelecido, à luz dos valores básicos. Desta forma, o termo “transcender” remete para o sentido de “vislumbrar além da evidên- cia”. Isto significa, por um lado, um questionamen- to de atribuições atuais e, por outro, uma orientação para possibilidades ainda não realizadas.
A transformação rumo à libertação traduz-se no pro- cesso de transcender o presente e o estabecido, como diz Ulrich Becker que, durante algum tempo, colabo- rou com Paulo Freire no Conselho Mundial de Igrejas em Genebra:
“A pedagogia se agarra à fantasia do grande ce- nário, mesmo em face da experiência do caos. Vê uma integridade de vida em toda a fragilidade da existência humana e além dela. (...) Se isto for verdade, então a pedagogia só pode ser pedago- gia se tiver componentes transcendentes. Com- ponentes que sempre significam mais do que podemos simplesmente ver, uma dimensão de esperança. “(1995, p.114)
INVESTIGADORES CONVID ADOS
A pedagogia da libertação de Paulo Freire evidencia, pois, esta profundidade dos processos de mudança almejada. Por um lado, ela assume os aspectos subs- tanciais de uma autocompreensão libertada e, por ou- tro, constroi reiteradamente cenários de esperança de uma vida digna e justa.
Narrativas proféticas
Uma referência importante tem a ver com o conceito de “profecia / profetas”, um termo usado por várias re- ligiões, denotando a mensagem ou a proclamação de um deus. Da citação mencionada no início, fica claro que Freire situa a profecia na transição do caos para a utopia. Ou seja, face a circunstâncias excludentes de vida, a profecia vê e fornece imagens de outra forma de existência, de uma forma desejável de lidarmos uns com os outros. Tais narrativas e noções de dignidade
e justiça são legitimadas religiosamente como profe- cia, estando ligadas, portanto, à razão primordial do viver. As imagens proféticas não são apenas meras in- venções da imaginação, mas estão relacionadas com a autoridade de insights e ideias do mais alto significado da vida, precisamente como a proclamação de Deus. As profecias têm um efeito transformador, do ponto de vista social e pessoal porque: a) justificam a indig- nação contra as circunstâncias existentes; b) apresen- tam as mudanças como pretendido; c) orientam-se para possíveis perspetivas; d) criam esperança de que o tempo para algo novo já amanheceu. Para Freire, a imagem profética é o “sonho da humanidade”, uma orientação para algo que ainda não é, mas que já é anunciado, aqui e agora. Com efeito, esclarece:
“O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O so- nho é assim uma exigência ou condição que se vem fazendo permante na história que nós faze- mos e que nos faz e re-faz.” (2005, p. 99)
Tal sonho ou utopia penetra no “caos”, numa ordem que declarou a desumanidade como sendo a dada normalidade e condena as pessoas que nela vivem à aceitação incondicional. As profecias sacodem as coi- sas, questionando esta normalidade e colocando ou- tras imagens em contraste. E, assim, a fachada da inviolabilidade do caos normal começa a desmoronar, um primeiro passo para mudar as circunstâncias e as pessoas: as circunstâncias, porque outras condições estruturais se tornam concebíveis; as pessoas, porque rejeitam agora ser dominadas pelas circunstâncias e protagonizam elas mesmas a História.
Durante muito tempo, grupos políticos revolucioná- rios verificaram que, para haver uma mudança social e política, seria necessário, apenas, que as pessoas de- senvolvessem a consciência crítica, o reconhecimen- to de que são exploradas pelo sistema. Freire, no en- tanto, foi além disso, ressaltando a importância de as pessoas se tornarem mais humanas.
As profecias não veem apenas utopias sociais; tam- bém veem “mais” nas pessoas, o humano em cada indivíduo. Segundo Freire, a educação tem precisa- mente esta missão: construir as pessoas como seres humanos, fazê-las descobrir e experimentar interna- mente uma imagem de dignidade, quebrar o silêncio e ouvir especialmente aquelas que têm sido tratadas como não-humanos. Alfabetizá-las significa, assim,
dar-lhes a possibilidade de expressar dos seus senti- mentos, de desenvolver uma linguagem para poder lidar com sua situação e, deste modo, devolvê-las a si mesmas. Nesta perspetiva, a Educação é o diálogo para se tornar humano, num sentido interior de dig- nidade e amor (Chaves et al., 2016, p. 42).
As profecias de libertação vivem da promessa e da orientação para o novo, o que não só é possível como, sobretudo, na linguagem religiosa, é justificada por Deus, a referência acima de tudo. Paralelamente às análises críticas, estas imagens são decisivas, consti- tuindo narrativas positivas que inspiram as pessoas sobre como as coisas poderiam e deveriam ser, inspi- rando-as e levando-as a desejar ser mais, a viver bem. Leonardo Boff, um teólogo da libertação, exemplifica isso muito bem quando afirma:
“Vamos rir, chorar e aprender. Aprender espe- cialmente como casar Céu e Terra, vale dizer, como combinar o cotidiano com o surpreenden- te, a imanência opaca dos dias com a transcen- dência radiosa do espírito, a vida na plena liber- dade com a morte como um unir-se com os an- cestrais, a felicidade discreta nesse neste mundo com a grande promessa na eternidade. E, no termo, teremos descoberto mil razões para viver mais e melhor, todos juntos, como uma grande família, na mesma Aldeia Comum, generosa e bela, o planeta Terra.“ (2001, p.9)
Libertação nos
desafios globais
O que significa “libertação” diante dos atuais desafios globais? Antes de mais, evidencia-se o aspeto sisté- mico: o sistema económico estabelecido internacio- nalmente explora uma grande parte da população mundial. É do conhecimento geral que as empresas internacionais procuram os locais onde possam pro- duzir a baixo custo e, ao mesmo tempo, com maior lucro. Nesta lógica, para um grande número da popu- lação, os direitos humanos continuam a ser desconsi- derados, e a proteção climática, com exigências ecoló- gicas, dificilmente é aplicável.
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Uma mudança fundamental das condições estruturais sistémicas significa criticar e inverter radicalmente esta lógica. Significa desenvolver outras formas de atividade económica e libertar-se gradualmente da dependência do sistema. Trata-se de procurar viver juntos, de modo a garantir a dignidade de todo o ser, e de preservar o ecossistema enquanto base de toda a vida. Duas tarefas humanas.
A libertação não é apenas um desafio para as po- pulações exploradas mas, sem dúvida, reitera-se, também para as pessoas que se encontram numa si- tuação privilegiada, também elas são reféns de de- pendências sistémicas, uma vez que a base da sua prosperidade leva à exploração e à miséria de ou- tros, assim como à destruição da natureza. Liberta- ção significa que estas pessoas também precisam de ser participantes e implulsionadoras de mudanças radicais, com vista à construção de um sistema eco- nómico e social mais justo.
Face ao exposto, fica claro que, ao lado da mudança sistémica, económica-política, há sempre uma liber- tação mental. Há agora muitas análises dos efeitos negativos de uma sociedade fortemente individuali- zada e, ao mesmo tempo, orientada para o rendimen- to individual. Nesta lógica, o indivíduo é considerado como o único responsável pela sua situação, sendo que o sistema social existe principalmente para garantir o jogo livre dos indivíduos.
O sociólogo alemão Hartmut Rosa aponta criticamen- te para a aceleração dos processos sociais, que arras- tam as pessoas ao longo do tempo. Ele observa um medo crescente de não se conseguir acompanhar este ritmo e, ao mesmo tempo, um empobrecimento das relações humanas. Também significativo para este
processo é a orientação de sentido para o rendimento pessoal e para os bens materiais.
Neste caso, a libertação diz respeito a uma convivên- cia social em que todos possam sentir-se aceitos e atendidos, independentemente do seu desempenho económico. Rosa representa uma mudança na capaci- dade de as pessoas se relacionarem consigo mesmas, com os outros e com o mundo, naquilo que designa por “ressonância”. Com efeito:
“A boa vida, entretanto, é mais do que a soma do maior número de momentos de felicidade (ou mesmo a minimização de experiências de infelicidade) que ela tornou possível: É o resultado de uma relação com o mundo caracterizada pelo estabelecimento e manu- tenção de eixos estáveis de ressonância que permitem e possibilitam que os sujeitos se sintam apoiados ou mesmo seguros em um mundo responsivo e acomoda- dor.” (2016, p.59)
O trabalho de educação profética de libertação, como Paulo Freire o concebeu, oferece importantes pontos de partida na busca de estilos de vida responsáveis e de estruturas justas, numa perspectiva global. Ou seja: A educação toma a indignação sobre as condições atu- ais, de forma crítica, como um ponto de partida para as mudanças necessárias. O trabalho educativo deve, portanto, ter um efeito transformador. Isto significa que não se orienta para o status quo mas, de forma conciente, para visões possíveis e desejáveis do futu- ro, pelo que o foco da aprendizagem são as formas de chegar ao futuro.
As narrativas (proféticas) acompanham esta orientação com diversas imagens de relações transformadas entre as pessoas e das pessoas com o meio ambiente, lidando com as possibilidades de uma vida significativa.
A libertação, perspetivada enquanto realização de sen- tido, também objetiva tornar-se humana, ser huma- na. Questões substanciais do desenvolvimento da per- sonalidade podem trazer novos potenciais para uma coexistência responsável.
Paulo Freire e a sua abordagem da educação, no senti- do de libertação, continuarão relevantes em 2022, ano em que se comemora o seu 100º aniversário, e conti- nuarão a desafiar fundamentalmente os formatos e os conteúdos educacionais existentes.
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