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S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

UM OLHAR SOBRE PAULO FREIRE

Ivone Neves

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Professora adjunta da ESEPF e investigadora do CIIPAF e CeiED


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Resumo:


Paulo Freire é um referente incontornável no campo da educação que nos deixou um legado de princípios e ensinamentos inspiradores de práticas educativas transformadoras e emancipatórias para educadores, crianças e jovens. Assim, o presente artigo apresenta uma reflexão, inspirada em duas obras Freirianas (Pedagogia da Autonomia e Pedagogia do Oprimido) que nos confrontam com um manancial de estratégias e princípios que perspetivam uma educação libertadora, um educador problematizador, de forma a permitir e “ajudar o aluno a tornar-se arquiteto da sua própria prática cognoscitiva” (Freire, 1997, p.140). Releva-se ainda a importância e a necessidade, tão premente como atual nas sociedades contemporâneas, de práticas e experiências educativas ancoradas da dialogicidade, que sejam promotoras do desenvolvimento do sentido crítico, da autonomia e capacitação de todos os atores sociais envolvidos.


Palavras-chave:

Educação bancária; Educação problematizadora; Relação dialógica.


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DATA DE RECEÇÃO: 2022/09/30

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DATA DE ACEITAÇÃO: 11/11/2022

Abstract:


S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Paulo Freire is an undisputed reference in the field of education, leaving us a legacy of inspiring principles and teachings of transformative and emancipatory educational practices for educators, children, and young people. Hence, this article presents a reflection, inspired by two Freirian works (Pedagogy of Autonomy and Pedagogy of the Oppressed) that confront us with a source of strategies and principles that envision a liberating education, a problematizing educator, to allow and “help the student to become the architect of his own cognitive practice” (Freire, 1997, p.140). It also highlights the importance and need of educational practices and experiences anchored in a dialogue culture for the modern society, which promote the development of critical thinking, autonomy and empowerment of all social actors involved.


Keywords:

Banking education; Problematizing education; Dialo- gic relationship.


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“Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na acção- reflexão” (Freire, 1975, p.114)


Paulo Freire, como crítico e reformista, acreditava que o mundo só seria melhor se os homens se ajudarem, partilharem o seu saber e se inseridos na realidade a transformarem em conjunto.

O presente é visto como algo dinâmico e revolucionário, em que os sujeitos olham para a realidade não como algo estático, imutável, mas como algo que pode ser transformado pelos próprios. A mudança é vista como algo que depende do questionamento permanente dos indivíduos, que “situados” em determinada realidade veem o futuro, não como algo predestinado, mas como algo possível de ser alterado.


Educação bancária / educação problematizadora

Defensor de um pensar e agir, em diálogo e comunicação constante e de forma autêntica, o carácter dialógico da educação atravessa toda a obra de Freire, ancorado no princípio de que “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 1975, p.79). Nesta conceção de educação, que o autor denomina de problematizadora, a relação educador- educando assume um carácter singular e marcante. A centralidade que atribui ao diálogo é crucial como meio para aceder ao conhecimento e à construção do espírito crítico. O educador/professor problematizador é entendido como aquele que apela ao questionamento permanente dos seus educandos e se assume como um sujeito que reflete a sua ação e, concomitantemente, aprende ao ensinar e ao comunicar com os outros (Freire, 1975). O compromisso que educador e educando estabelecem nesta relação, tida de dialógica, assenta

num processo de engajamento de ambos, levando a que se transformem em sujeitos no processo de aprendizagem com base na premissa de que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire,1997, p.29).

Assistimos assim a um paradigma educativo em que o saber decorre da construção e reconstrução na ação e na comunicação que, por sua vez, alavanca a reflexão e a curiosidade epistemológica. A situação educativa é percecionada como uma “situação gnoseológica” que se faz dialógica” e se transforma num “acto cognosciente” (Freire, 1975, p.97).

A aprendizagem é revestida de toda uma capacidade crítica que afeta todo o processo de aprendizagem, através de uma dialética, estreita e transformadora, que estabelece entre o educador e o educando. Conforme advoga Freire (1997), nas condições de verdadeira aprendizagem, “os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e de reconstrução do saber ensinando ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (Freire, 1997, p.29). Esta reciprocidade fruto da dialética estreita e transformadora que se cria entre educador e educando conduz a que “Quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (Freire,1997, p.25). Esta formação, diz ainda o autor, deve assentar no exercício da criticidade que alavanca a curiosidade epistemológica (Freire, 1997). Contatamos que a atualidade do discurso de Paulo Freire é notável e converge justamente com o alerta da UNESCO (2022), a propósito dos futuros da Educação:

“A pedagogia deve ser organizada com base nos princípios de cooperação, colaboração e solidariedade. Ela deve promover as capacidades intelectuais, sociais e morais dos estudantes, para que trabalhem juntos e transformem o mundo com empatia e compaixão. Também há o que “desaprender”, como vieses, preconceitos e polarizações hostis. A avaliação deve refletir esses objetivos pedagógicos, de modo a promover crescimento e aprendizagem significativos para todos os estudantes. Os currículos devem enfatizar a aprendizagem ecológica, intercultural e interdisciplinar que apoie os estudantes no acesso e na produção de conhecimento. Ao mesmo tempo, a aprendizagem deve desenvolver a capacidade de criticar e aplicar esse conhecimento” (UNESCO, 2022, p. xiv).


Freire confronta-nos ainda com uma reflexão em torno de um paradigma educativo que designa de “educação


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bancária” (Freire, 1975) que, contrariamente à abordagem problematizadora, preconiza uma conceção de educação que restringe e inibe o poder criador dos alunos, coloca-os numa posição de meros recetáculos do saber, em que a criatividade é abafada e anulada dando lugar à “ingenuidade em vez do seu espírito crítico” (Freire, 1975, p.99).

Corroboramos com Freire que a “educação bancária” se assemelha a uma “cultura do silêncio” (Freire,1975), em que o papel do educador e do educando se situam em vertentes diametralmente opostas, designadamente:

  1. “O educador é o que educa; os educandos, os que são educados.

  2. O educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem.

  3. O educador é o que pensa; os educandos, os pensados.

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  4. O educador é o que diz a palavra; os educandos, os que escutam docilmente.

  5. O educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados.

  6. O educador é o que opta e prescreve a sua opção; os educandos os que seguem a prescrição.

  7. O educador é o que atua; os que têm a ilusão dos que atuam, na atuação dos educadores.

  8. O educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele.

  9. O educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele.

  10. O educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos” (Freire, 1975, p.84).


A rigidez que carateriza o papel e ação do professor, enquanto único detentor do saber e os educandos, por sua vez, como os que nada sabem, levam a que o educador se afirme perante aqueles com“a sua antinomia necessária” (Freire, 1975, p.83), alimentando a ignorância e a passividade dos alunos que serão percecionados como melhores, quanto mais dóceis e passivos se tornarem. Esta relação educativa marcadamente desigual e assimétrica acentua, claramente, a hegemonia e a centralidade da ação do educador.

Concordamos que a educação faz-se e refaz-se constantemente na práxis. Uma práxis que suporta um homem situado e incluso em determinada realidade histórica e social e que tal como advoga Freire (1975) os homens são seres em “situação” que “encontram-se

enraizados em condições espácio-temporais” (p.145) que os determinam, mas que, concomitantemente, exige uma reflexão permanente sobre o seu modo de estar e agir criticamente. A conscientização decorre, assim, deste processo de aprofundamento do pensamento crítico, da tomada de consciência por parte dos sujeitos “da imersão em que se achavam, emergem, capacitando-se para inserir-se na realidade que se vai desvelando” (Freire, 1975, p.145) e onde a inserção surge como o resultado da conscientização da situação.


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A relação dialógica e o “engajamento”

Outra questão fascinante que Paulo Freire nos interpela, prende-se justamente com o papel da palavra na relação educativa. Crítico feroz do carácter narrador, dissertador que caracteriza esta relação, o narrador é, habitualmente, o papel assumido pelo professor pois, como alerta Freire (1975), “A tónica da educação é preponderantemente esta -narrar, sempre narrar” (p.81). A realidade é abordada pelos educadores como algo sem vida, estático ou então é apresentada como algo completamente alheio e distante da experiência e vida dos educandos. É perante esta realidade que Freire releva a necessidade de a Escola considerar os alunos, não como sujeito passivos, meros ouvintes, recetáculos do saber, mas antes, participantes ativos, agentes e protagonistas ao longo do seu processo de desenvolvimento. Importa para isso que sejam criadas oportunidades para que os alunos possam investigar, discutir e negociar, pois, “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (Freire, 1975, p.83).

Ensinar exige disponibilidade para o diálogo (Freire, 1997). A dialogicidade da educação é uma forma de enriquecimento mútuo do educador e educando. Sabemos que quanto mais se problematizam os educandos mais eles serão desafiados a relacionar os


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problemas uns com os outros, situando-os num todo global. A compreensão resultante é assim cada vez mais crítica, desencadeando “novas compreensões de novos desafios” e é assim “que se dá o reconhecimento que se engaja” (Freire, 1975, p.100). Como adianta Freire na sua obra Pedagogia do Oprimido “a presença dos oprimidos na busca da sua libertação, mais do que pseudoparticipação é o que deve ser: “engajamento” (1975, p.78). Um “engajamento” imbuído de ação e reflexão, em que educador e educando se comprometem, sendo ambos, sujeitos na ação que a criticam e recriam através da produção de novos conhecimentos.

A mudança e a transformação requerem diálogo, um diálogo solidário pois “como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconhe- ço...” (Freire, 1975, p.116). O egoísta, autossuficien- te, não vê vantagens no ato de comunicar e “não há diálogo, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens” (1975, p.114). Como lembram Yang e Gergen (2012), “as implicações educativas do construcionismo social (…) [passam pela] valorização da participação e do diálogo, e não mais do monólogo, trata-se de en- contrar formas colaborativas de promover a educação” (p.129). Entendemos que o ato de ensinar não é um processo que se reduz a uma transferência de conhe- cimentos, mas antes a um “criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (Freire, 1997, p.29).


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O perfil

de educador

Na obra “Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire, encontramos um manancial de estratégias, princípios que perspetivam uma educação libertadora onde o educador problematizador tem um papel fulcral no desenvolvimento de uma verdadeira aprendizagem dos educandos que permitam “ajudar o aluno a tornar- se arquiteto da sua própria prática cognoscitiva” (Freire, 1997, p.140).

Assim, segundo a conceção problematizadora da educação de Freire (1997), o educador deve seguir alguns princípios:

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  • Respeitar a autonomia e identidade dos educandos, torná-los insubmissos e autónomos no “pensar”.

  • Estar aberto a questões, à curiosidade dos alunos, estar disponível para o diálogo.

  • Criar formas de os educandos poderem participar na avaliação.

  • Tornar a aula num desafio permanente em que “os alunos se cansam e não dormem” porque acompanham o pensamento do professor nas suas certezas, dúvidas e incertezas.

  • Professores e alunos assumirem uma postura “dialógica”peranteavida,ser“epistemologicamente curiosos” em vez da curiosidade ingénua que caracteriza o senso comum.

  • Ser um educador humanista, democrático, que valoriza e reforça a capacidade critica do educando.

  • Ser um educador que faz permanentemente uma reflexão crítica sobre a sua prática, avaliando o seu desempenho.

  • Como professor não devo deixar de testemunhar aos meus alunos a segurança que tenho no meu saber, mas também a humildade para reconhecer que “posso saber melhor e que já sei conhecer o que ainda não sei” (Freire, 1997, p.153).

  • Respeitar como professor, as diferenças.


Respeitar as diferenças implica reconhecer e aceitar a identidade cultural do outro, permitir que se assuma “como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos” (Freire, 1997, p.46).

O papel do educador é o de ensinar, mas ensinar a “pensar certo” (Freire, 1997) e para “pensar certo” é necessário não estarmos demasiado certos das nossas certezas.


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Diz ainda Freire (1975, p.144), que “não posso investigar o pensar dos outros referido ao mundo se não penso. Mas, se não penso autenticamente os outros também não pensam”. Esta dependência que é referida pelo autor, não é escravizante, no sentido de anular o outro, antes pelo contrário, é libertadora e desafia a verdade e coerência do pensar e do agir, “não posso pensar pelos outros nem para os outros nem sem os outros” (Freire,1975, p.144). Esta interconexão remete para uma visão humanista da educação assente na premissa de que - eu aprendo com os outros e estes enriquecem- se também ao interagirem comigo, permitindo a cada um “dizer-se pessoa” Nóvoa (1996, p.3).


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Referências Bibliográficas


Freire, Paulo. (1975). Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento.

Freire, Paulo. (1997). Pedagogia da autonomia. S. Paulo: Editora Paz e Terra.

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Nóvoa, A. (1996). Eu pedagogo me confesso. Diálogos com Rui Grácio. Revista Inovação, 14, (12),1-23.

Yang L, & Gergen, K. (2012). Social Construction and its Development: Liping Yang Interviews Kenneth Gergen. Psychol Stud,(57(2),126-133.

UNESCO (2022). Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação.

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação. https://unesdoc.unesco.org/ ark:/48223/pf0000381115


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