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INOVAÇÃO PEDAGÓGICA NOS CENTROS EDUCATIVOS DAS

S A B E R & E D U C A R 3 0 / 2 0 2 1 : O P R E S E N T E D O F U T U R O D A I N F Â N C I A

IRMÃS DOROTEIAS: A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS

Pedro Jesus

Centro de Investigação para o Desenvolvimento Humano, Universidade Católica Portuguesa


Irene Cortesão

Centro de Investigação de Paula Frassinetti (CIPAF) Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

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Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti (ESEPF)


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Resumo:


Os centros educativos das Irmãs Doroteias em Portugal têm vindo a empreender nos últimos anos um processo de inovação educacional. Perseguindo um perfil de alu- nos(as) e um perfil de educadores(as) de marca identi- tária, o caminho percorrido em rede tem privilegiado a inovação ao nível do planeamento da ação e a inovação pedagógica em três domínios, a educação da interio- ridade, a gestão curricular e a participação das crian- ças. Este texto centra-se no âmbito da participação das crianças, procura refletir sobre o modo como se estru- tura o trabalho pedagógico e a formação em ação numa dinâmica de oficina de inovação pedagógica, identifi- car temáticas comuns à inovação pedagógica que tem sido protagonizada pelos atores sociais em cada centro educativo, e perspetivar os próximos passos a dar.


Palavras-chave:

Inovação pedagógica; Rede de escolas; Participação das crianças.


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DATA DE RECEÇÃO: 3/08/2021

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DATA DE ACEITAÇÃO: 21/10/2021

Abstract:


In recent years, the Portuguese schools of Sisters Dor- oteias have been undertaking a process of educational innovation. Pursuing a profile of students and a profile of educators with an identity mark, the path taken by the schools’ network has privileged innovation at the level of action planning and pedagogical innovation in three domains, education of interiority, curricu- lum management and children’s participation. This text focuses on the scope of children’s participation, seeks to reflect upon the ways that pedagogical work and training in action are structured in a pedagogical innovation workshop perspective, to identify common themes to pedagogical innovation that has been car- ried out by social actors in each educational center, and envision the next steps to be taken.


Keywords:

S A B E R & E D U C A R 3 0 / 2 0 2 1 : O P R E S E N T E D O F U T U R O D A I N F Â N C I A

Pedagogical innovation; Schools network; Children’s participation.


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“O jogador de hóquei no gelo Wayne Gretzky foi o maior goleador do mundo em 1982. O seu segredo, disse, era simples. Outros joga- dores tendiam a correr até ao lugar onde esta- va o disco. Gretzky corria em direção ao lugar onde ele deveria estar”. (Robinson, 2015)


Bússoa 21, um processo de renovação educativa

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Figura 1. A rede de centros educativos com os respetivos ciclos de oferta educativa


No livro “Creative Schools”, Ken Robinson (2015), co- meçou por utilizar esta metáfora desportiva, aludin- do a que, na frenética corrida à normalização, muitos sistemas educativos e escolas se dirigem a correr ao lugar onde acreditam que está o disco em vez de o fa- zer em direção ao lugar em que ele realmente estará. Considerando que as pessoas não são todas iguais nem o são as suas capacidades e formas de ser, o autor desa- fia os leitores a encontrar uma versão mais adequada do modelo educativo predominante: “precisamos de uma metáfora que se adeque melhor”.

É no contexto de um desafio semelhante que surge o projeto Bússola 21, assumindo a ambição de “renovar por dentro o estilo de educar dos centros educativos das Irmãs Doroteias, para o século XXI, com a marca da identidade/novidade” (Doroteias da Província Por- tuguesa, 2017a, p. 2). Desde 2017, uma rede de nove centros educativos que abarca os diferentes ciclos de ensino, da creche ao ensino superior, encontra-se a desenvolver um processo de inovação educacional, en- raizado na pedagogia de Santa Paula Frassinetti, com o olhar posto na necessidade de ser resposta ao tem- po de hoje e de amanhã, que está já aí, consciente de que “a eficácia da ação coletiva do grupo de professores e funcionários depende do facto de se ter uma visão de valor partilhada e de se ser uma comunidade que aprende, não só que ensina” (Doroteias da Província Portuguesa, 2017b, p. 4).

A figura 1 ilustra a constituição da rede de centros edu- cativos das Irmãs Doroteias em Portugal, com a indi- cação dos ciclos de ensino que cada um abrange.

Não se chegou a esse empreendimento por uma súbita vontade ou, simplesmente, por não se querer ficar de fora de uma tomada de consciência coletiva, cada vez mais alargada, de que o modelo escolar dominante,

fruto de constrangimentos vários, é limitado na ca- pacidade de encontrar respostas novas qualificadas a problemas novos (e antigos) identificados, que tantas vezes “sufocam” diariamente os seus atores sociais. De modo especial a partir de 2010, foi percorrido um caminho pela Província Portuguesa das Irmãs Doro- teias, focado na assimilação de um perfil de educador de marca doroteia, na vivência desses valores em cada centro educativo e no reforço da identidade/ consciên- cia comum da importância de um trabalho em rede na “aventura” de expressar hoje a marca doroteia. A cele- bração dos 150 anos de presença das Irmãs Doroteias em Portugal, em 2016, evidenciou a pertinência desse património, hoje chamado a assumir novos desafios e a expressar-se em novas linguagens.

Esse processo criou as condições para que se pudesse formular um horizonte agregador da inovação edu- cacional a perseguir, com o propósito de ele vir a ser aprofundado na definição e concretização de intencio- nalidades pedagógicas pelos protagonistas das comu- nidades educativas, horizonte esse que preconiza “um novo estilo de educar”, consubstanciado por: educado- res em caminho permanente de inovação pedagógica e descoberta-vivência de uma espiritualidade... apai- xonados pela missão de educar; crianças e jovens su- jeitos ativos do ato de aprender, comprometidos com o seu crescimento integral... protagonistas da própria vida e agentes de transformação da realidade; escola/ Famílias/Comunidades numa aliança renovada... ao serviço do projeto educativo e do bem comum da hu- manidade; com a marca doroteia.

Este é, pela sua natureza, um processo participado, com envolvimento crescente dos atores sociais das co- munidades educativas, das lideranças de topo às lide- ranças intermédias, das crianças e jovens às famílias.

Por conseguinte, não se pretende adquirir inovações pedagógicas da moda, mas sim trilhar um caminho em torno de um horizonte coerente de inovação e melhoria, que torne cada centro educativo, cada vez mais, num lugar de pessoas que, de modo organizado, se desenvolvem e abrem caminho a presentes e futu- ros melhores:


A obra educativa é uma obra de esperança. Esperan- ça em Deus a quem se deve recorrer pela oração para alcançar todo o auxílio necessário. Esperança no edu- cando, nas suas possibilidades latentes que é preciso ajudar a descobrir. Acreditar que ele é capaz. Confiar nele e dar-lhe todas as provas de confiança (Nogueira, 1967, p. 411).


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Empreender, pois, um caminho de renovação e mu- dança. Como organizar essa ousadia? Autores como Thurler (2001) consideram que, em grande medida, o grau e o modo de cooperação profissional irão definir os recursos diretamente mobilizáveis sempre que a eficiência das práticas passar pela ação harmonizada de vários educadores.


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A participação das crianças como campo de inovação educacional

A reflexão que o tempo atual tem provocado em to- dos os âmbitos de pensamento ligados à educação foi sendo sentida pela rede como exigência de uma mudança no estilo e na forma de ensinar e ajudar a aprender. Nesse sentido, algumas experiências pio- neiras no terreno que ousaram abrir caminhos no- vos, como o sistema educativo da Finlândia, os co- légios dos Jesuítas da Catalunha, os colégios inova- dores das Irmãs Missionárias de Nazaret, e a Escola da Ponte em Portugal, constituíram-se como exem- plos inspiradores. Por sua vez, a publicação pelo Ministério da Educação (Martins et al., 2017) de um “Perfil dos Alunos à saída da Escolaridade Obriga- tória”, com todas as opções políticas educativas que lhe estão ligadas, convidava a uma paragem e uma mudança de rumo a que não se podia ficar indiferen- te (Doroteias da Província Portuguesa, 2017a). Toda a caminhada feita, assim como os desafios educativos emergentes criaram um sentido de responsabilidade e urgência que pedia um passo decisivo de inovação. Importa, contudo, ter em conta que, não obstante muitos estudos apresentarem o conceito de inova- ção educacional numa perspetiva meramente téc- nica ou neutra, associando-o simplesmente a algo novo, não existe apenas uma definição sobre o que é, uma vez que esta é sempre refém do olhar que se perfilha sobre a própria educação, o seu propósito moral e o sistema de crenças (Fullan, 2016), os man- datos que a orientam e as finalidades que prossegue. Nesse prisma, e tendo em conta o caráter específi- co e identitário do processo de renovação educativa aqui relatado, parece-nos fazer sentido aproximar o conceito de inovação educacional adotado pelos centros educativos das Irmãs Doroteias da concep- tualização de Jesus e Azevedo (2021), que, na esteira de Carbonell (2008), Santos (2018) e Nóvoa (2020), o caracterizam como


um conjunto de ideias, processos e estratégias, mais ou menos sistematizados, mediante os quais

se introduzem e se provocam mudanças nas práticas educativas vigentes, que concorram para a melho- ria das aprendizagens dos alunos e das práticas de ensino dos educadores, ao serviço quer de sujeitos e comunidades alicerçadas no respeito democrático, na equidade e na solidariedade, quer da educação entendida como um bem comum no espaço público. (Jesus & Azevedo, 2021, p. 30)


Por outro lado, a inovação educacional é também um conceito multidimensional (Fullan, 2016), sen- do possível identificar diversas componentes ou dimensões em jogo na conceção e implementação de uma qualquer inovação. No projeto Bússola 21, quando se equacionou que áreas de inovação se de- veria privilegiar num primeiro momento, procurou-

-se refletir em torno de duas questões:


  1. Que áreas de inovação podiam ser suficiente- mente “arrastadoras” de uma mudança que, embora lenta, se pudesse tornar sistémica e, por isso, fonte da renovação do estilo de educar?

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  2. Que áreas de inovação emergiam como mais ne- cessárias pelos centros educativos, pelas suas direções, professores, crianças e jovens, ao lon- go dos diálogos estabelecidos no ano inicial do projeto?


    No cruzamento dessas duas linhas de questiona- mento, foram consensualizadas três áreas de apro- fundamento, em torno das quais se organizaram as Oficinas de Inovação Pedagógica (OIP), num modelo de formação em ação a implementar nos anos leti- vos seguintes: Educação da Interioridade (EI); Ges- tão do Currículo (GC); e Participação das Crianças e Jovens (PC).

    De que modo pode, então, ser considerada a PC como campo de inovação educacional?

    O debate atual sobre a urgência de transformação do modelo escolar, com contributos da investigação e da prática, parece acentuar a necessidade de uma mudança do “papel dos alunos”, de modo a que assu- mam o protagonismo no próprio processo de apren- dizagem e desenvolvam competências que permi- tam a aprendizagem profunda e a agência de trans- formação da realidade. Contudo, paradoxalmente, parece ainda haver uma grande escassez de estudos e de iniciativas de inovação educacional, em peque- na ou em grande escala, que envolvam efetivamente as crianças e jovens. Os alunos, geralmente, ficam de fora, são “objetos” secundários das reformas e

    não agentes com participação ativa nessa constru- ção (Amorim & Azevedo, 2017; Perrenoud, 1995).

    No entanto, alguns estudos recentes revelam o de- sejo das crianças de terem uma escola diferente daquela que conhecem e a existência de um pensa- mento divergente do pensamento dos adultos que é necessário ouvir e levar em consideração, sendo as suas contribuições de grande valor para se começa- rem processos de inovação e melhoria educacional (Amorim & Azevedo, 2017; Castro & Manzanares, 2016).

    Se, por um lado, um longo caminho ainda parece ser necessário fazer para se considerar os alunos como players efetivos dos processos de inovação e melhoria escolar, alguns estudos que problematizam a inova- ção educacional e a mudança educativa apontam já a participação dos alunos como dimensão-chave a ter em conta nos respetivos processos (MacGilchrist, Myers, & Reed, 2004).

    Apesar da ausência de consenso sobre o alcance se- mântico da expressão que o enuncia, o movimento students voice, ao englobar as iniciativas que visam a promoção da participação dos alunos nos contextos educativos, parece ser um ponto de partida promis- sor para o desenvolvimento de novas possibilidades de participação das crianças e dos jovens, tanto em modelos mais formais como em outras abordagens que persigam perspetivas de aprendizagem demo- crática. Nesse sentido, diversos autores têm vindo a destacar a visão das instituições educativas como comunidades de aprendizagem (Lodge, 2005), co- munidades democráticas (Fielding, 2012), comuni- dades de práticas (Susinos & Ceballos, 2012), onde é possível desenvolver um maior protagonismo dos alunos nos diversos âmbitos da vida escolar bem como possibilitar o estabelecimento de uma cultura de cuidado, assente em relações entre as pessoas que gerem processos de inovação e mudança coconstruí- dos, em autêntica dinâmica de aprendizagem inter- geracional.

    No âmbito da inovação pedagógica levada a cabo por meio do projeto Bússola 21, procurou-se refletir so- bre o que significa a participação das crianças e jo- vens. Trata-se de um conceito complexo de analisar, porque conhecido de todos e com o qual docentes e não docentes em contextos educativos lidam diaria- mente. Quem está ligado à Educação quotidiana- mente, sabe que o ato de educar implica participar. Todos os dias os educadores e professores fazem ati- vidades com as crianças e os jovens e eles participam nessas atividades. Mas o que se propõe no contexto

    deste processo de inovação, é uma nova forma de olhar o conceito de participação das crianças e jo- vens no espaço educativo. Neste contexto e de acor- do com Schafer (2011), defende-se que o ambiente educativo deve ser propício à expressão individual, um local onde o aluno se sinta à vontade para com- partilhar experiências, um lugar onde se possa dar liberdade ao aluno para desenvolver as suas capa- cidades criativas. Criar esse ambiente é tarefa dos professores, uma tarefa que implica também uma mudança no papel que tradicionalmente estes têm no processo educativo. Propõe-se assim deixar cair algumas das certezas que se foram adquirindo com a prática, abrindo as portas a uma nova forma de olhar o papel que os adultos e as crianças têm nos espaços educativos, olhando as crianças como seres com competência para serem verdadeiros parceiros na construção da Escola.

    Sabemos que as crianças e os jovens possuem ca- pacidades e competências para dar um contributo inovador para melhorar os espaços sociais em que vivem e por isso necessitam ser ouvidos (Tomás & Gama, 2011). Mas, sabemos também que não bas- ta ouvir as suas vozes. A verdadeira escuta das vo- zes dos alunos pressupõe um trabalho de descons- trução, interpretação, devolução e, finalmente, de tomada de decisão conjunta entre alunos e adultos com diferentes níveis de responsabilidade na escola (Trevisan, 2018). Escutar os alunos significa, assim, criar oportunidades para que possam compartilhar opiniões sobre diferentes assuntos, desde os mais simples, como a infraestrutura da escola e as ati- vidades em sala de aula, até aos mais complexos, como mudanças no currículo e na organização es- colar. A participação dos alunos não se deve limitar apenas a aspetos funcionais ou de consulta, mas ser parte de um efetivo diálogo interpessoal que visa desenvolver a participação e a emancipação dos alu- nos (Amorim & Azevedo, 2017). Vemos, deste modo, a participação como “um processo gradual, mas se- guro, que se pretende, que pela experiência e pela aprendizagem da participação das crianças, seja um valor em si mesmo e um direito fundamental da in- fância no reforço dos seus valores democráticos” (To- más & Gama, 2011, p.3). Os alunos têm o direito de influenciar e esta participação e influência não po- dem ser negociadas ou aceites como prémios. Atra- vés desta presença ativa e participativa dos alunos, é possível a expansão do espaço público democrático, com o consequente trabalho e com a reflexão con- junta, com responsabilidades partilhadas no mo-

    mento de se pensar o futuro. A participação deverá ser consequente, contribuindo para a “construção de uma narrativa comum”, como afirmam Amorim e Azevedo (2017, p.69), significando que deverá pro- duzir mudanças, sejam elas de nível micro ou macro dentro da instituição escolar, constituindo-se como um importante momento de construção de apren- dizagens, com os alunos, sobre as transformações possíveis e as não possíveis.

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    No entanto, para escolher, os alunos precisam de desenvolver a sua capacidade de analisar, tomar decisões e assumir as consequências sobre as suas escolhas. Para de facto envolver os alunos, as con- sultas das suas opiniões deverão ser realizadas com o apoio de dinâmicas, instrumentos e linguagens compreensíveis e estimulantes para eles. Também deverão ser inclusivas, para que capturem múltiplas vozes, mesmo as mais silenciosas e dissonantes. Isto porque a experiência de interações face a face com outras pessoas que podem ter perspetivas dife- rentes sobre o bem comum, poderá contribuir para aumentar o pluralismo social, a confiança inter- pessoal e tolerância “e só então é que experiências de participação podem contribuir para promover o desenvolvimento pessoal e capacitação e o pluralis- mo social que são essenciais para colocar a democra- cia em ser” (Menezes, 2003, p. 442). Quando a es- cola oferece este tipo de situação aos seus alunos, também os prepara para serem mais assertivos em relação às demais escolhas que farão ao longo da vida. No entanto, como Tomás e Gama (2011) cha- mam a atenção, promover e garantir a participação das crianças implica um intenso trabalho de articu- lação de diversos atores e de múltiplos saberes, re- configurando uma outra forma de pensar a infância e a escola, constituindo-se como um caminho para fomentar um processo de desenvolvimento do inte- resse pelas questões da participação, por parte dos adultos e por parte das crianças, ocasionando espa- ços de mútua aprendizagem.


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    A oficina de inovação pedagógica

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    Considerando que a inovação é um processo e não um produto, que a mudança requer tempo para arrancar no terreno e que uma educação renovada não aconte- ce da noite para o dia, considerou-se pertinente orga- nizar a inovação pedagógica, a ser gerada e gerida na escola, a partir de um modelo de oficina de inovação pedagógica (OIP). Em dinâmica de trabalho e apren- dizagem colaborativa, as oficinas são “equipas de ação e inovação, que vão agindo e aprendendo, além de apoiarem os colegas de todos os centros” (Azevedo, 2018). Esse trabalho ocorre com uma periodicidade se- manal em cada centro educativo, estabelecendo um ritmo próprio para que as rotinas instaladas não pre- valeçam. Para além do trabalho e aprendizagem em cada centro, privilegia-se igualmente a interligação aos outros centros onde se realizam os mesmos esfor- ços, com acompanhamento permanente de uma du- pla de peritos, conforme mostra a Figura 2.


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    Figura 2. OIP Participação das Crianças – equipas por centro e ciclo educativo


    A cooperação dentro e entre escolas permite reforçar a capacidade e a sustentabilidade do caminho empreen- dido. Segundo Azevedo (2018, pp. 3-4), uma OIP dos centros educativos das Irmãs Doroteias é:


    uma equipa de educadores dos nossos centros educati- vos (ou todos ou parte), organizada por áreas de inova-

    ção consideradas prioritárias, que visa orientar, exe- cutar, acompanhar e avaliar o processo de inovação. As OIP:

    • incentivam os projetos de inovação, com apoio in- tercolegial e de um(a) perito(a);

    • estudam novos caminhos e recolhem novas ideias;

    • apontam modelos e apoiam a sua implementação;

    • recolhem e selecionam recursos para apoiar os co- legas;

    • promovem a capacitação dos educadores;

    • documentam, criam mecanismos de informação ágil, clara e transparente, usando diversos canais;

    • criam um banco de documentos e de dados de boas práticas;

    • ligam-se às outras equipas de inovação pedagógi- ca, para descobrir sinergias e garantir a coerência do processo de inovação e melhoria;

    • zelam pela avaliação dos projetos que estão em marcha;

    • enfrentam os conflitos com otimismo, sem os mi- nimizar nem maximizar, prevenindo-os;

    • confiam e ensinam a confiar, são perseverantes;

    • não deixam que os projetos sejam impossíveis, que queiram resolver situações que escapam às possibilidades de ação da equipa e do colégio.

      A humildade, a generosidade, o apoio permanente e a esperança são as marcas salientes do seu perfil.


      Este é, assim, também um processo formativo em ação. No caso específico da OIP Participação das Crian- ças, esse processo apoia-se em:

    • momentos de capacitação no mês de julho para os educadores participantes;

    • encontros semanais de trabalho colaborativo de cada equipa no próprio centro educativo, apoiados por um(a) coordenador(a) interno(a);

    • encontros mensais das equipas de cada centro com os peritos;

    • encontros mensais das equipas dos centros, orga- nizadas em dinâmicas de partilha intercentros, com o acompanhamento dos peritos;

    • encontros trimestrais das lideranças escolares com os peritos.

    Ao longo do tempo foram sendo construídos documen- tos estruturantes do trabalho a desenvolver no âmbito da OIP. Desde logo, o Perfil dos(as) Alunos(as) dos Cen- tros Educativos das Irmãs Doroteias (PA), que organi- za um conjunto de características a desenvolver, orga- nizadas em dois grandes eixos indissociáveis: a) ser protagonista da própria vida; e b) ser agente de trans- formação da realidade. Mas também, complementar-

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    mente, o Guia da Participação das Crianças e Jovens. Este referencial assume uma visão dinâmica sobre o processo de ser e se tornar pessoa, a partir da qual faz sentido considerar-se que a consecução dos dois gran- des eixos do PA exige uma tripla compreensão: i) o espaço escolar é um dos contextos da vida do aluno e da sua realidade, logo o ser protagonista e agente de transformação é um postulado para o presente (e não apenas para um futuro); ii) assumir os traços do PA é uma construção que implica a própria pessoa e a co- munidade educativa, faz parte, por isso, do processo de aprendizagem; iii) isso requer oportunidades efeti- vas, sistemáticas e apoiadas, integradas na dinâmica escolar quotidiana. Em síntese, se o aluno não souber (não aprender a) participar, não será protagonista da própria vida nem agente de transformação da realida- de. Nesse sentido, a participação das crianças e dos jo- vens em contexto escolar contribui de modo significa- tivo para o desenvolvimento das características do PA.

  3. uma problematização de “o que é participação” e “o que não é participação”;

  4. uma referência aos fatores “inibidores da parti- cipação” e aos fatores “facilitadores da participa- ção”;

  5. um “mural de experiências”, que apresenta exem- plos concretos, tanto de centros educativos das Irmãs Doroteias como de outras escolas que mos- tram como é possível envolver as crianças e os jo- vens nas decisões sobre a escola.

    O mural foi perspetivado como um espaço que pre- tende dar a conhecer algumas práticas educativas, ocorridas nos centros educativos das Irmãs Doroteias e noutros contextos, em que a participação das crianças e dos jovens tem um papel central. Não se trata de um conjunto de exemplos fechado nem de uma recolha exaustiva das múltiplas dimensões em que a partici- pação pode ocorrer em diferentes contextos educati- vos. Pelo contrário, deve ser entendido como um espa-

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    ço em construção, aberto à inclusão de novas práticas inspiradoras com que se for contactando.

    Ao longo dos últimos anos, através da articulação pro- porcionada pela colabora- ção intercentros, foi possí- vel identificar algumas te- máticas comuns no traba- lho desenvolvido pelos oito centros educativos: i) docu- mentação pedagógica; ii) realização de assembleias;

    iii) exploração e alteração de espaços, exteriores e in- teriores; iv) comunicação e notícias dos centros educa- tivos; v) mediação entre pa- res; vi) apoio tutorial entre pares; e vii) experiências de voluntariado.

    Para os próximos anos pre-

    Figura 3. Eixos em que se estruturam as características do PA

    vê-se dar continuidade ao tra- balho de inovação neste domí-

    O Guia da Participação das Crianças e Jovens está orga- nizado em cinco pontos:

    1. uma reflexão e fundamentação teórica sobre o conceito de participação;

    2. uma apresentação das razões para a adotar a par- ticipação nos centros educativos das Irmãs Doro- teias, com base no PA;

nio, sendo que já no próximo ano letivo se pretende que os objetivos se alarguem à:

  • capacitação de uma equipa de peritos internos em cada centro, que potencie o apoio interno à plani- ficação, gestão e avaliação de atividades/projetos de participação das crianças e jovens;

  • construção de um referencial “Degraus de Partici-


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Figura 4. Guia da Participação das Crianças e Jovens


pação”1, numa dinâmica de investigação coletiva com crianças e jovens, que assinale o desígnio de fazer evoluir a participação de um nível em que ela ocorre em espaços muito limitados e claramente estabelecidos para um outro em que a “voz dos alunos” se torna marca identitária, configuran- do um horizonte que é capaz de impregnar toda a vida escolar, na gestão tanto do campo organizati- vo como do curricular.

Em síntese, importa que a OIP contribua para a ca- pacitação dos professores/ educadores nesta área de inovação, mas também que os centros educativos aprofundem, ao longo do tempo, a reflexão e inovação pedagógica num processo transformador do real papel das crianças e jovens no quotidiano escolar – para esse fim, consideramos pertinente a construção partici- pada de um referencial próprio que permita iluminar esse caminho.


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Considerações finais

A “renovação do estilo de educar” dos centros educa- tivos das Irmãs Doroteias é um processo em marcha. Um processo que não nasceu delineado à partida, mas que, pelo contrário, se constrói a partir da participação dos diversos atores sociais nos centros educativos, na conceção, implementação e avaliação da inovação que é gerada. Nessa ótica, as OIP estruturam essa partici- pação, criam espaços de discussão e aprendizagem e potenciam a disseminação do conhecimento que se vai construindo. Como outros processos de reflexão, ação, avaliação e aperfeiçoamento, constitui-se como fonte permanente de desafios.

Tendo em conta a ousadia do empreendimento, consi- deramos que o objeto da reflexão-ação concretizada na OIP é parte de um todo inovador maior, carecendo per- manentemente de atenção, apoio e articulação com ou- tras áreas de inovação. Por outro lado, temos consciên- cia que fazer caminho neste domínio da participação das crianças e dos jovens pressupõe uma transforma- ção nas crenças e nos gestos profissionais dos adultos, enraizados durante muito tempo. Significa, por parte dos professores e educadores, a capacidade de saírem da sua área de conforto dentro do processo educativo, conseguindo-se distanciar do que Perrenoud (1992) de- signa como “rotinas repousantes”, valorizando o traba- lho realmente colaborativo, pensando criticamente a sua ação e permitindo-se perceber e adotar novas forma de agir. Torna-se, por isso, num processo difícil, lento e, por vezes, doloroso.

Parece-nos ainda importante sublinhar que a parti- cipação das crianças e dos jovens em contexto escolar pode oferecer excelentes oportunidades de desenvolvi- mento das pessoas dos alunos enquanto protagonistas da própria vida e agentes de transformação da realida- de, como aliás foi já possível testemunhar nestes anos de caminho conjunto.

A experiência de um já largo conjunto de educadores(as) como autores(as) da inovação, em diálogo e aprendiza- gem intergeracional com as crianças e jovens, permite-

-nos constatar que existe hoje uma maior clareza quan- to aos conceitos inerentes à participação, mas também quanto às barreiras e aos fatores que a podem favorecer no quotidiano escolar.


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1 – Com base na investigação de experiências de participação das crianças em contextos educativos, no estudo de alguns referenciais de evolução da participação (Fiel-

ding, 2012; Hart, 1992; Shier, 2001) e na experiência de implementação de atividades/projetos no âmbito da OIP.

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Num futuro próximo, as áreas de inovação pedagógi- ca que têm sido alvo de aposta nestes primeiros anos deverão convergir para um modelo mais integrado de pensar a escola e os processos de ensino-aprendizagem. Até lá, esperamos que os passos já dados, e que de al- gum modo foram sendo narrados ao longo deste texto, permitam gerar e consolidar aprendizagens pessoais, coletivas, institucionais e interinstitucionais que tor- nem real a corrida não ao lugar onde o disco está, mas ao lugar onde ele deve estar, retomando a metáfora de Robinson (2015). Na linha de uma educação trans- formadora e emancipadora, com a marca doroteia.


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Referencias bibliográficas


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