S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
PAULO FREIRE NA ÁFRICA: CONTRIBUIÇÃO
POLÍTICO- PEDAGÓGICO NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES DE ADULTOS EM CABO
VERDE
Florenço Mendes Varela
1
Escola Universitária Católica de Cabo Verde
Resumo:
Este texto resulta de diversas comunicações no âmbito da preparação e da celebração do Centenário de Paulo Freire em 2020 e 2021 e pretende partilhar a contribuição político-pedagógico de Paulo Freire na formação de educadores em Cabo Verde e suas repercussões nas políticas educativas, tendo como base a minha tese de Doutoramento em Educação (Varela, 2018). País arquipelágico, africano e saheliano, Cabo Verde é um dos raros países que desenvolveu uma política de educação e formação de adultos, original, com uma continuidade notável, um subsistema de educação extraescolar, paralelo e equivalente ao subsistema escolar, com um currículo e um programa específico, uma carreira de educadores integrada na carreira do pessoal docente e um sistema de reconhecimento e certificação. O trabalho realizado que conduziu à tese, propõe- se a contextualizar historicamente a formação de educadores e analisar os seus resultados, utilizando o estudo de caso, com caráter essencialmente descritivo. No que respeita à contribuição político- pedagógico de Paulo Freire, os resultados apontam que a formação de educadores teve repercussões positivas, nomeadamente, no desenvolvimento de conhecimentos para o exercício da profissão, na democratização do acesso à educação, na valorização da carreira profissional do Educador de Adultos e no fortalecimento do sistema educativo nacional.
Palavras-chave:
INVESTIGADORES CONVID ADOS
Paulo Freire; Cabo Verde; Educação de adultos; Formação de Educadores.
2
DATA DE RECEÇÃO: 2022/11/02
Abstract:
This text is the result of several communications in the preparation and celebration of Paulo Freire’s Centenary in 2020 and 2021 and intends to share paulo freire’s political-pedagogical contribution in the training of educators in Cape Verde and its repercussions on educational policies, based on my doctoral thesis in Education (Varela, 2018). An archipelagic, African and Sahelian country, Cape Verde is one of the rare countries that has developed an original adult education and training policy with remarkable continuity, a subsystem of out- of-school education, parallel and equivalent to the school subsystem, with a curriculum and a specific program, a career of educators integrated in the career of teaching staff and a system of recognition and certification. The work carried out that led to the thesis, it is proposed to contextualize historically the education of educators and analyze their results, using the case study, with an essentially descriptive character. With regard to Paulo Freire’s political-pedagogical contribution, the results indicate that the training of educators had positive repercussions, namely on the development of knowledge for the exercise of the profession, in the democratization of access to education, in valuing the professional career of the Adult Educator and in the strengthening of the national educational system.
Keywords:
Paulo Freire; Cape Verde; Adult education; Education of educators.
Contexto históri-
co da formação de adultos em Cabo Verde
S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
Contextualizar historicamente a formação de educadores de adultos e abordar a contribuição político- pedagógico de Paulo Freire, permite compreender, as concepções, trajetórias e práxis educativas, fornecendo contribuições pertinentes para esse entendimento. No contexto global, como refere Arroyo (2006) a literatura não apresenta parâmetros harmonizados acerca da educação e formação de adultos e a formação de educadores acontece, praticamente, à margem das atividades da formação de professores, na maior parte dos casos, sem a devida institucionalização.
Na maior parte dos casos, a alfabetização de adultos é, geralmente, entendida como a capacidade de ler e escrever (UNESCO, 2014). Em Cabo Verde, a abordagem conceptual da alfabetização está associada à proposta pedagógica de Paulo Freire. A concepção da alfabetização na perspectiva de Paulo Freire é “emancipadora” e “entendida como ato político e ato de conhecimento” (Romão & Gadotti, 2012:56).
O importante, de fato, na alfabetização de adultos não é o aprendizado da leitura e da escrita de que resulta a leitura de textos sem a compreensão crítica do contexto social a que os textos se referem. Esta é a alfabetização que interessa às classes dominantes quando por diferentes razões, necessitam estimular, entre as classes dominadas, a sua “introdução ao mundo das letras”. E quanto mais “neutras” fizera estas classes sua “entrada” neste mundo, melhor para aquelas.
Numa perspectiva revolucionária, pelo contrário, impõe-se que os alfabetizandos percebam ou aprofundem a percepção de que o fundamental mesmo é fazer história e por ela serem feitos e refeitos e não ler a estória alienante (Freire, 1980:22).
Cabo Verde teve uma visão de educação convergente com o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire.“A alfabetização, mais do que esses mecanismos
de aprendizagem dum alfabeto” […] é a “tomada de consciência para podemos capacitar, para podermos ser eficientes na transformação dessa realidade” (Cabo Verde, 1979:13).
Do nosso ponto de vista, é esta abordagem conceptual e contextualização histórica de Educação de Adultos que abrange todas as atividades educacionais e de treinamento para adultos, de alfabetização ao desenvolvimento profissional contínua de médicos e engenheiros, incluindo formação para o trabalho, aquisição de línguas, educação ambiental e de saúde e extensão rural, numa perspectiva de aprendizagem ativa ao longo da vida, que deveria nortear a formação de educadores em Cabo Verde.
A educação de adultos, enquanto subsistema de educação extraescolar, integrado no sistema educativo começou, verdadeiramente, após a independência, em 1975, com o processo de democratização do ensino e da luta contra o analfabetismo. A orientação política sobre a alfabetização e educação de adultos surgiu durante a luta pela independência protagonizada por Amílcar Cabral, para quem a educação era a principal arma da libertação.
A decisão de “instruir” a população vem da primeira Constituição da República (1980) que reconhece que “o estado considera a liquidação do analfabetismo tarefa fundamental” (art.º 15º, nº 2). A partir dessa decisão foi necessário desenvolver um novo conceito de educação e de implementar progressivamente um novo sistema educativo.
Além da ideia de que a educação deve propiciar uma formação integral, “deverá manter-se estreitamente ligada ao trabalho produtivo, proporcionar a aquisição de qualificações, conhecimentos e valores que permitem ao cidadão inserir-se na comunidade para o seu incessante progresso” (art.º 15º, nº 1).
O desenvolvimento do subsistema de Educação de Adultos, em articulação com o sistema de ensino e de formação, constitui um dos eixos estratégicos dos sucessivos Governos, numa ampla e permanente concertação com os parceiros sociais, com vista à salvaguarda da coerência entre as políticas de educação, formação e emprego e a mobilização do esforço nacional na valorização do capital humano, na orientação do sistema de educação e formação para áreas prioritárias do desenvolvimento e na promoção de uma política global de inclusão e solidariedade social.
Desde a independência do país, foi sustentada a ideia segundo a qual, conhecidas as suas carências de recursos naturais, o desenvolvimento de Cabo Verde só seria possível através de uma forte aposta
na qualificação dos seus recursos humanos para que o país pudesse diminuir significativamente a sua dependência do exterior e melhorar a competitividade da sua economia a nível internacional, tanto por via do aumento de produtividade das suas unidades económicas, como pela melhoria da qualidade dos bens produzidos e dos serviços prestados. Para a materialização de tal desiderato, como se viu anteriormente, foi necessário o incremento do programa coerente e eficaz de Educação de Adultos.
A Constituição da República de 1992 amplia a visão da educação e estabelece que “o estado promoverá uma política de ensino que visa a progressiva eliminação do analfabetismo, a educação permanente, a criatividade, a inserção das escolas na comunidade e a formação cívica dos alunos” (art.º 74º, nº 1).
Paulo Freire e Amilcar Cabral: que convergência?
A conceção freiriana da alfabetização foi compreendida como início de uma cultura letrada que deve chegar até ao nível superior, como qualquer língua. “A alfabetização é multifacetada, complexa. Reduzi- la ao letramento é o mesmo que mutilar o processo educativo. A alfabetização é um projeto político para a construção de um projeto do mundo, de uma nação” (Gadotti, 2009:21).
INVESTIGADORES CONVID ADOS
Segundo a concepção político-pedagógica de Paulo Freire a alfabetização não se limita à aprendizagem da escrita, da leitura e do cálculo, mas sim, uma ação abrangente, libertadora, portanto, socialmente útil. O Plano Curricular da Educação de Adultos aprovado pela Portaria nº 34/96 de 30 de setembro, passou a articular a Formação Académica com a Formação Profissional e estabelece um duplo reconhecimento consubstanciada numa certificação académica e certificação profissional, antecedendo o estipulado no Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida elaborado pelo Conselho Económico Europeu, em Lisboa, em 2000, que parte do pressuposto em como “a
melhor escola é a escola da vida” (CEE, 2000).
Nesta medida, o Plano Curricular de 1996 foi elaborado em conformidade com o conceito da alfabetização saída da Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien (Tailândia), em 1990, que entendeu que a alfabetização seria uma primeira etapa da educação básica e não pode ser separada da pós-alfabetização, isto é, das necessidades básicas de aprendizagem.
Não há uma só alfabetização. Existem várias alfabetizações – digital, cívica, ecológica… - para uma vida social e individual plena. Há conhecimentos sensíveis, técnicos, simbólicos. A alfabetização é um sistema complexo com textos, contextos que não se pode reduzir “ao básico”. O direito à educação não termina no básico. A alfabetização não é um fenómeno estático. Ela deve ser integral e sistémica; deve ser uma bio- alfabetização, uma alfabetização permanente. Se existem muitas alfabetizações, não podemos estar livres de nos alfabetizar sempre, ao longo de toda a vida (Gadotti, 2009:22).
A educação e formação de jovens e adultos em Cabo Verde e o pensamento político-pedagógico de Pau- lo Freire na 1ª década pós-independência encontram fundamentos, especialmente, na obra “Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes” (Ro- mão & Gadotti, 2012), através da convergência que es- tabelece entre esses dois educadores, na vigorosa luta contra todas as formas de submissão, em defesa da auto-conscientização, portanto, da “descolonização das mentes”, da luta pela dignidade humana e da con- quista da autonomia pelos próprios oprimidos.
Amílcar Cabral (1924-1973), “humanista, revolucioná- rio, pedagogo e educador da revolução”, (Romão & Ga- dotti, 2012:82), pai da nação caboverdiana, demons- trou durante o processo de libertação que a luta pela independência deveria ser suportada pelo programa de alfabetização, tendo em conta que a independên- cia não limita ao hino e à bandeira. Na dedicatória da obra sublime Cartas à Guiné-Bissau, Paulo Freire (1978) enaltece: “Amílcar Cabral, educador-educando de seu povo”.
Amílcar Cabral sabia que os canhões sozinhos não faziam a guerra e que esta se resolve quando, em seu processo, a debilidade dos oprimidos se faz força, capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza. Daí a preocupação constante, a paciente impaciência com que invariavelmente se deu à formação política e
ideológica dos militantes, qualquer que fosse o nível e o setor de sua ação. Daí a atenção especial dedicada ao trabalho de educação nas zonas libertadas e também o carinho com que, antes de ir à frente de combate, visitava as crianças das escolinhas e compartilha com elas de seus jogos e brinquedos e a quem costumava chamar de “flores de nossa revolução” (Freire, 1978:19).
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Romão & Gadotti (2012:14) chama a atenção para a necessidade do aprofundamento do legado de Paulo Freire e de Amílcar Cabral e sustentam que “não é difícil perceber as convergências que se podem estabelecer entre eles”, através de dois exemplos dessa convergência: “a precedência da prática sobre a teoria; a importância da leitura da realidade cotidiana, como forma de apreensão do conhecimento válido e legítimo (Romão & Gadotti, 2012:32).
Na década de 70, não podendo desenvolver o seu pensamento político pedagógico no Brasil, enquanto membro do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, onde estava exilado, Paulo Freire, assessorou alguns países da África, recém-libertadas da colonização europeia nos finais dos anos 60, cooperando na implementação dos seus sistemas educativos pós-independência, com destaque para Tanzânia e Zâmbia.
Esse reencontro com a África serviu de fonte de inspiração para o aprimoramento do seu pensamento político-pedagógico e o “desenvolvimento de sua teoria emancipadora da educação, entendida como ato político, ato produtivo e ato de conhecimento” (Romão & Gadotti, 2012:55). Entretanto, a influência de Paulo Freire em África foi mais impactante em Cabo Verde e na Guiné-Bissau que estavam unidos pelos ideais da luta pela independência protagonizada pelo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado em 19 de setembro de 1956, sendo Amílcar Cabral o expoente máximo. O Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde PAIGC Cabo Verde e Guiné- Bissau procuraram preservar essa união até ao golpe militar orquestrado, por Nino Vieira, em 1980, tendo o ramo caboverdiano convertido em Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), fundada em 20 de janeiro de 1981, de ideologia social-democrática, com afiliação na Internacional Socialista.
Sobre as suas experiências em África, Paulo Freire destaca na obra Cartas à Guiné-Bissau (Freire, 1978), o encontro com a teoria e a prática de Amílcar Cabral.
O trabalho de Paulo Freire na África foi decisivo para a sua trajetória, não só por reencontrar-se
com sua própria história e por empreender novos desafios no campo da alfabetização de adultos, mas, principalmente, pelo encontro com a teoria e a prática desse extraordinário pensador e revolucionário que foi Amílcar Cabral (1924-1973) por quem Paulo Freire nutria enorme apreço. Em suas obras ele faz frequentes referências ao pensamento de Amílcar Cabral. A África, berço da humanidade, foi para Paulo Freire uma grande escola (Romão & Gadotti, 2012: 57).
A convergência entre Paulo Freire e Amílcar Cabral está bem ilustrada no texto: Amílcar Cabral: o pedagogo da revolução (Freire, 1985): “Em Cabral eu aprendi uma porção de coisas, digo em Cabral significando também com Cabral, eu aprendi muitas coisas. Eu confirmei outras coisas de que eu suspeitava”. Freire enaltece a humildade encontrada em Cabral. Um dos saberes necessários à prática docente refletida na Pedagogia da Autonomia (Freire, 2006) em como "ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores”:
uma coisa que eu aprendi muito com Cabral, foi como um educador progressista precisa fazer-se simples, sem, porém, jamais virar simplista. Isso me parece fantástico. Pegue os textos de Cabral, e eles são realmente simples, mas não simplistas. Para mim o simplismo, é uma expressão fantástica, contundente do elitismo, é pior até do que o populismo, mas coincide muito com certas vocações populistas. Quer dizer, no fundo o simplismo é autoritário. O simplista é aquele que diz: como vou falar a essa gente que não é capaz de me entender. Então ele fala meias-verdades, quartos de verdade, não são nem meias-verdade, são pitadas de verdades. Em Cabral a gente vê contrário disso, o que Cabral faz é buscar, com simplicidade, falar do concreto seriamente. Depois dessa introdução em que eu digo a vocês, e repito, que não me sinto um especialista em Cabral, não me arrogo assim, mas que tenho uma enorme admiração por ele. Inclusive, eu tenho em nossa casa, uma foto de Cabral, é a única foto em que o vi em pé com um fuzil. Disseram-me em Bissau, que ele tinha horror àquela foto, por que era uma das únicas coisas, possivelmente negativas em Cabral. E que ele tinha raiva do tamanho dele, eu não sei até onde é verdade, mas dizem que ele era baixinho e que tinha uma raiva enorme do seu tamanho, sobretudo quando ele estava com um fuzil a tiracolo, aí a gente vê que ele era
pequeno mesmo. Por causa dessa história da altura Cabral, eu vou até me admitir o direito de ser medíocre e dizer um desses frasões bestas: Cabral era enorme por dentro (Freire, 1985, p. 15).
A contribuição político-peda- gógico de Paulo Freire em Cabo Verde
Paulo Freire esteve em Cabo Verde, em 1977 e 1979, dirigindo a equipa do Instituto de Ação Cultura (IDAC), integrado pela Elsa Freire e pelo Miguel Darcy de Oliveira, que cooperou com Cabo Verde até meados dos anos 80.
INVESTIGADORES CONVID ADOS
O Relatório do Seminário de Formação dos Coordenadores Regionais de Alfabetização, realizado em São Vicente, de 4 a 12 de outubro de 1979 (Cabo Verde, 1979), é uma das referências onde encontramos evidências sobre a influência do pensamento de Paulo Freire em Cabo Verde no período pós-independência, pelo número de participantes nacionais, 56 (cinquenta e seis), participantes da Guiné-Bissau, 5 (cinco) e participantes internacionais, 5 (cinco), mas sobretudo, pela pertinência e atualidade dos temas desenvolvidos, com realce para o tema de abertura do seminário, “Alfabetização inserida na perspectiva global do desenvolvimento”, abordado pelo então Primeiro Secretário do PAIGC na ilha de São Vicente, Professor Doutor Corsino Tolentino e a “Exposição de Paulo Freire sobre as Tarefas dos Coordenadores de Alfabetização”.
A comunicação do Professor Corsino Tolentino, mostra a visão que Cabo Verde tinha da alfabetização nessa
altura e sua convergência com o pensamento político- pedagógico de Paulo Freire.
“A alfabetização, mais do que esses mecanismos de aprendizagem dum alfabeto e das suas diversas combinações e usos para exprimirmos aquilo que pensamos em cada momento, para podermos comunicar com alguém, para além desse mecanismo que é fundamental é essa tomada de consciência. Mas não uma tomada de consciência indiferente. Uma tomada de consciência para podemos capacitar, para podermos ser eficientes na transformação dessa realidade” (Cabo Verde, 1979:13).
Na comunicação de abertura, Corsino Tolentino realça ainda a concepção que Cabo Verde tinha sobre as perspectivas do desenvolvimento do país.
Nós devemos considerar os apoios vindos de outros sectores, de outras latitudes, apenas como uma colaboração, apenas como um estímulo, e devemos partir sempre do princípio de que a tarefa é nossa. Porque a alfabetização é um problema fundamentalmente político. É preciso que as pessoas saibam ler e escrever; é preciso que um trabalhador numa empresa saiba ler a origem, a organização, a existência, o fim da empresa em que trabalha. É preciso que ele saiba interpretar esta situação (Cabo Verde, 1979:19).
Nesse Seminário de Formação dos Coordenadores Regionais de Alfabetização, realizado em São Vicente, Paulo Freire traçou as diretrizes sobre a figura do coordenador de alfabetização e sustentou o conceito de “Círculo de Cultura”1. Vale realçar que no contexto dos países lusófonos, Cabo Verde ainda utiliza esse conceito, amplamente disseminado nos documentos normativos da educação e formação de jovens e adultos. Durante esse seminário de formação de coordenadores regionais de alfabetização, Paulo Freire fez uma exposição sobre “as tarefas do coordenador” que continua atual, como já tivemos oportunidade de explicitar em outros documentos (Varela, 2009).
O pensamento político-pedagógico de Paulo Freire, apoiando nas reflexões de Amílcar Cabral, terá influenciado sobremaneira a Educação de Adultos em Cabo Verde na 1ª década pós-independência.
Segundo Romão & Gadotti (2012), imensurável número de educadores tem encontrado nas ideias e atuação
1 – A ideia original dos Círculos de Cultura foi criada por Paulo Freire para substituir a escola, cuja denominação, pela força de sua tradição, é considerada passiva e autoritária. Os Círculos de Cultura envolvem um novo conceito de educação, especialmente, na relação entre o educador e o educando. Sua preocupação principal é de levar os participantes a tomar consciência das distinções entre o mundo e a natureza e este da cultura enquanto resultado do esforço criativo e recreativo do homem (Freire, 1980).
militante de Paulo Freire o alimento necessário para enriquecer e aperfeiçoar sua práxis. O pensamento de Paulo Freire destaca a necessidade e a importância da formação política e ideológica.
Os trabalhos de Paulo Freire e de sua equipe na África não eram estritamente de alfabetização de adultos, não beneficiavam apenas os alfabetizandos e não se limitavam ao estritamente pedagógico. Eles eram mais abrangentes e incidiam sobre uma boa parte da sociedade, envolvendo o governo como um todo e não só o Ministério da Educação [...].
A clareza política que ele reconhecia em Amílcar Cabral era a mesma que ele próprio tinha em relação à situação das ex-colónias na África (Romão & Gadotti, 2012:95-96).
S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
O Relatório do Seminário de Formação dos Coordenadores Regionais de Alfabetização, realizado em São Vicente, de 4 a 12 de outubro de 1979 (Cabo Verde, 1979), é uma das referências onde encontramos evidências sobre a contribuição do pensamento de Paulo Freire em Cabo Verde no período pós- independência, pelo número de participantes nacionais, 56 (cinquenta e seis), participantes da Guiné-Bissau, 5 (cinco) e participantes internacionais, 5 (cinco), mas sobretudo, pela pertinência e atualidade dos temas desenvolvidos, com realce para o tema de abertura do seminário, “Alfabetização inserida na perspectiva global do desenvolvimento”, abordado pelo então Primeiro Secretário do PAIGC na ilha de São Vicente, Professor Corsino Tolentino e a “Exposição de Paulo Freire sobre as Tarefas dos Coordenadores de Alfabetização”.
Na sua exposição no Seminário de Formação dos Coordenadores Regionais Paulo Freire destaca que “coordenador em primeiro lugar, faz-nos lembrar o verbo coordenar e leva-nos a um verbo mais simples que é ordenar”, para demonstrar que “coordenar, na medida em que é ordenar, é dar ordem, ordenar alguma coisa, é planificar, é possibilitar criar e recriar no esforço do ordenamento, é ordenar algo com alguém”.
Neste sentido, realça que “ordenar envolve autoridade e liberdade e coordenar sugere que a relação entre autoridade e liberdade se dê em termos harmoniosos e respeitosos”. Uma autoridade respeitando as liberdades e a liberdade reconhecendo o papel da autoridade, visto que o coordenador se relaciona com o alfabetizador enquanto autoridade e o alfabetizador
com o coordenador enquanto liberdade, do mesmo modo que o Departamento de Educação se relaciona com o coordenador enquanto autoridade e o coordenador enquanto liberdade.
Ao analisar esses dois níveis de relação, autoridade e liberdade, abstração do real, verificamos que a origem da palavra coordenar “releva a preposição com preposição de companhia”. Assim, “coordenar implica ordenar algo com alguém e não para alguém, não a despeito de alguém, não contra alguém”. Na realidade, toda coordenação implica um trabalho contra um outro tipo de interesse: “a coordenação sugere harmonia entre a autoridade e a liberdade”.
A harmonia entre a autoridade do coordenador e a liberdade do alfabetizador (liberdade de falar, dizer, participar, criticar, sugerir etc. rompe se essas liberdades do alfabetizador são abafadas pela autoridade do coordenador que passa a exercer só a sua liberdade (de criar, falar, contribuir, criticar, sugerir). O mesmo acontece se o alfabetizador negar essas liberdades aos alfabetizandos e se o Departamento da Educação também as negar ao coordenador; e se o Ministério as negarem ao Departamento; e se o Primeiro-Ministro negar essas liberdades aos Ministros, rompe-se a harmonia entre a autoridade e a liberdade, sem a qual não há nem democracia, nem desenvolvimento.
Um coordenador que fica em casa e depois inventa um relatório e manda ao Departamento não assume a responsabilidade. O seu trabalho está precisamente nessa convivência com alfabetizadores e com seus alfabetizandos. Daí a necessidade de visitas ao círculo de cultura. Mas essas são visitas de coordenação de ação e não coordenação do alfabetizador. O coordenador que coordena os alfabetizadores tem uma assunção autoritária da coordenação. A tarefa do coordenador não é coordenar os alfabetizadores, é coordenar a própria ação dos alfabetizadores e mais ainda é coordenar a própria Educação de Adultos, ação que envolve os alfabetizadores, os alfabetizandos e a comunidade em que se insere. Então o coordenador deve ser muito mais um artista na tarefa de retirar as esquinas, de limar as arestas do problema, de superar as dificuldades, de antecipar a solução de certos problemas, sem abafar a criatividade do alfabetizador (Cabo Verde, 1979:19).
Paulo Freire sustenta ainda que “as visitas aos círculos de cultura são visitas de camarada”, logo devem ser
encaradas como visitas de quem chega também para aprender, visto que não é possível apenas ensinar aos alfabetizandos. Neste sentido, as visitas de orientação pedagógica deveriam ser de alguém que visita um círculo de cultura para ajudar e não apenas para tomar nota das dificuldades do educador. Sustenta que “é preciso é que o coordenador veja muito mais os aspetos positivos do trabalho do camarada alfabetizador do que os negativos”, não querendo com isso dizer que esqueça os aspetos negativos, mas que também leve em consideração os aspetos positivos, como forma de encorajar o alfabetizador a superar as insuficiências. Uma outra tarefa importante que decorre de si mesma é a de realização de encontros normais, regulares, sistemáticos entre diferentes alfabetizadores para a avaliação das atividades de todos: “sugeria que em certos momentos, inclusive, equipas de alfabetizandos fossem convidados a fazer parte desses seminários de avaliação”, concluindo que “os alfabetizandos são a razão de ser dos círculos de cultura”.
Cabo Verde adotou o conceito ampliado de alfabetização como “ação cultural” de Paulo Freire que defende que o analfabetismo é consequência da negação de um direito e que o alfabetizando precisa saber que ele não é analfabeto por culpa dele.
Em Cabo Verde, a proposta político-pedagógica de Paulo Freire teve um impacto notável. A partir de Genebra, o Instituto de Ação Cultural (IDAC) teria influenciado o financiamento do programa de alfabetização e educação de adultos em Cabo Verde através do Conselho Mundial das Igrejas e, seguramente, teria estimulado o Governo Federal Suíço a financiar o programa de alfabetização de 1979/80 a 1999/2000.
Depois da atuação do IDAC nos finais dos anos 70 até meados dos anos 80, procurou-se imortalizar o legado freiriano em Cabo Verde. Assim, em 1997, foi celebrado um convénio entre a Direção Geral de Alfabetização e Educação de Adultos e o Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontífice Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), associada ao Instituto Paulo Freire (IPF), tendo vários educadores que integraram o programa de Formação de Educação de Adultos, objeto do presente estudo, realizado intercâmbios pedagógicos no Brasil, com realce para o desenvolvimento do Programa de Educação Interdisciplinar.
Essa cooperação com o Instituto Paulo Freire, fomentada no período da implementação do curso de Formação de Educadores de Adultos, resultou, em 2006, em quatro dissertação de mestrado no
campo de Educação de Adultos e, em 2014, numa tese de doutoramento sobre formação de professores e trabalho docente em Cabo Verde, ambos da Pontifícia Universidade católica de São Paulo – PUC-SP (Tavares, 2014). Tratou-se de uma cooperação autêntica que promoveu a troca de experiências de modo horizontal formando uma rede que supera a visão tradicional de cooperação, baseada em políticas assistencialistas.
O pensamento de Freire se inscreve na paisagem da política educacional caboverdiana e, simbolicamente lhe é consagrada (8 de setembro de 2000), a rua em que se situa o edifício da Direção Geral de Educação e Formação de Adultos, uma das principais zonas de concentração de instituições socioeducativas do país. EvocandoPauloFreire,noatocentraldascomemorações da Jornada Internacional da Alfabetização – 2008, o em então Chefe do Governo de Cabo Verde, professor José Maria Neves, que na sua juventude foi alfabetizador voluntário, fez uma exposição entusiasta sobre o papel da alfabetização. “Efetivamente alfabetizar é libertar! Só quem é alfabetizado, pode dizer convictamente que é uma pessoa livre”. Livre, porque, do ponto de vista político está mais bem preparada para descodificar as mensagens dos vários atores políticos e poder fazer escolhas mais conscientes. Como resultado, com uma sociedade mais alfabetizada, estará a se contribuir para uma melhor Democracia. Livre do ponto de vista económico e financeiro porque a pessoa alfabetizada está em melhores condições de poder conseguir um emprego digno ou ainda produzir o seu próprio emprego/empresa e conseguir maiores rendimentos para si e sua família. “Só tendo mais pessoas formadas e capacitadas poderemos ter mais acesso a emprego e rendimento” (Varela, 2009:185).
INVESTIGADORES CONVID ADOS
Pai da nação caboverdiana, Amílcar Cabral é citado na Declaração da Proclamação da Independência de Cabo Verde, 5 de julho de 1975, pela sua“pedagogia política”. Portanto, se Cabral foi para Freire a expressão da teoria articulada à prática revolucionária em ato, Freire foi para Cabo Verde pós-independência a possibilidade de uma prática educacional reflexivamente monitorada, portanto teoricamente assistida.
Conclusão
Não resta dúvida que Paulo Freire terá dado um enorme contibuto para a formacao de educadores de adultos em Cabo Verde e deixado um enorme legado. A referência a Paulo Freire é marcante, das escolas de formação de professores às universidades, passando pelos seminários e encontros de capacitação dos agentes educativos. Na obra conjunta com o caboverdiano Donaldo Macedo, Paulo Freire, destaca: “A ideia de alfabetização emancipatória sugere duas dimensões da alfabetização. Por um lado, os alunos devem alfabetizar-se quanto às suas próprias histórias, a experiência e à cultura de seu meio ambiente imediato” (Freire & Macedo, 1990:29).
S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”
Paulo Freire foi o educador que lançou as bases para uma educação libertadora que contribuiu para formar a consciência crítica e estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e económicos. Hoje, o combate ao analfabetismo, rumo à educação para a formação da cidadania planetária, é uma realidade, graças aos ideais do pedagogo Paulo Freire. Os educadores caboverdianos beberam e continuam bebendo na sua fonte, procurando reinventá-lo continuadamente. Os artigos publicados no Jornal Alfa revelam a influência do pensamento de Paulo Freire na formação dos educadores de adultos em Cabo Verde.
Na mesma linha, destaca-se ainda a realização, em Cabo Verde, em 2010, no período de 12 (data de nascimento de Amílcar Cabral) e 19 de setembro (data de nascimento de Paulo Freire), do VII Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, cujo tema central foi “Paulo Freire e Amílcar Cabral: por uma releitura da Educação e da Cidadania Planetária”, que culminou com a criação do Instituto Paulo Freire de Cabo Verde e a majestosa obra Paulo Freire e Amílcar Cabral. A descolonização das mentes (Romão & Gadotti, 2012).
Referências bibliográficas:
Arroyo, M. (2006). Formar educadoras e educadores de adultos. In: Formação de educadores de adultos. Soares, Leôncio (org.). Belo Horizonte: Autêntica/ SECAD-MEC/UNESCO.
Cabo Verde (1979). Relatório do Seminário de Formação de Coordenadores Regionais de Alfabetização. Praia.
Cabral, A. Guiné-Bissau: nação africana forjada na luta.
Lisboa: Nova Aurora, 1974.
Freire, P. & Macedo, D. (1990). Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Freire, P. (1985). Amílcar Cabral: o pedagogo da revolução. Palestra: 8 de novembro de 1985.
Curso de Mestrado. Faculdade de Educação Universidade de Brasília (Não editado).
Freire, P. (1980). Paulo. Educação como prática da liberdade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra 11ª edição.
Freire, P. (1978). Cartas à Guiné Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra 2ª edição.
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