465


O LEGADO DE PAULO FREIRE FACE À ERA DE DESINFORMAÇÃO1

Marina Maria Soares Silva

Universidade do Minho - Instituto de Ciências Sociais (ICS)


image

1

image

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

1 – Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da bolsa de investigação UI/BD/151163/2021 do projeto 101676689 (TID) que está sendo desenvolvido também com o apoio do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). Assim, este trabalho é também apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

image image


Resumo:


Este artigo procura percorrer por reflexões propostas nas obras do educador e filósofo Paulo Freire e relacioná-las com a problemática da desinformação. A desinformação e a pós-verdade, por sua vez, consistem em fenómenos complexos e nocivos, os quais culminam na deterioração de diálogos plurais, na distorção da realidade e, consequentemente, no aprisionamento de ideias baseadas em mentiras. É, por isso, que o legado da obra de Paulo Freire se afinca como uma luz a este cenário preocupante. O patrono da educação brasileira contribuiu fortemente com o pensamento de uma educação para a liberdade a qual prioriza um ensino crítico e emancipador. Partindo desses princípios, buscou-se com este trabalho utilizar as obras do educador para ressaltar a importância de um ensino crítico e emancipador no cenário da desinformação.


Palavras-chave:

Paulo Freire; Desinformação; Ensino crítico.


image


DATA DE RECEÇÃO: 2022/09/01

2

DATA DE ACEITAÇÃO: 2022/11/08

Abstract:


S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

This paper seeks to go through reflections proposed in the works of the educator and philosopher Paulo Freire and relate them to the problem of disinfor- mation. Disinformation and post-truth, in turn, consist in complex and harmful phenomena, which culminate in the deterioration of plural dialogues, the distortion of reality, and, consequently, the im- prisonment of ideas based on lies. That is why the legacy of Paulo Freire’s work sheds light on this wor- rying scenario. The patron of Brazilian education contributed strongly to the thought of an education for freedom that prioritizes critical and emancipa- tory teaching. Based on these principles, this work sought to use the educator’s works to emphasize the importance of critical and emancipatory teaching in the scenario of disinformation.


Keywords:

Paulo Freire; Disinformation; Fake news; Critical tea- ching.


image


image

Introdução

Face a problemática da desinformação e pós-verdade, nos deparamos com o mundo repleto de situações preocupantes envolvendo informações manipuladas ou falsas. Organizações utilizam deste artifício para tentar manipular opinião pública visando interesses particulares. Esta estratégia ocorre na história da humanidade desde a Roma Antiga1 e se torna cada vez mais forte com o desenvolvimento tecnológico e o surgimento de ferramentas que auxiliam o êxito desse tipo de conteúdo. Com isso, o mundo é desafiado para enfrentar a desinformação devido a facilidade de criação e difusão proporcionados pelo ambiente online. É na internet que os conteúdos fraudulentos circulam com rapidez e alcançam milhões de usuários, pois recursos de personalização online ajudam esta circulação e tornam o problema ainda mais complexo. Por esta razão, o ciberespaço passa a ser alvo de estudos para compreensão das facetas da desinformação e criação de insights de como podemos lidar com isso.

O pensamento crítico, por sua vez, surge como um dos aliados eficientes para enfrentar este cenário. É preciso tê-lo como base de conhecimento para que a sociedade possa se preparar de forma eficiente, e não pontual, contra cenários como este (Chinn et al., 2021; Buckingham, 2019).

Através de uma revisão bibliográfica, este artigo propõe uma reflexão sobre a conjuntura atual, observando a complexidade da pós-verdade e a ilustrando com alguns casos práticos. Sobretudo, buscamos relacionar as obras de Paulo Freire para o combate ao cenário referido, citando suas contribuições teóricas que são reconhecidas mundialmente (Freire, 2001; Freire, 2013; Freire, 2003; Freire, 1997; Freire, 1967; Freire, 1981). Acreditamos no pensamento atemporal do filósofo e educador em questão, sobre uma educação crítica e emancipadora, como uma luz frente a tempos sombrios da informação e comunicação.

image

Desinformação e

Ilusão Democrática da Pós-Verdade

Ainda que a distorção das informações seja algo re- corrente na história da humanidade e que a internet tenha possibilitado uma rentabilidade maior para as empresas e uma série de benefícios sociais como no- vas formas de trabalho, produtos, serviços e persona- lização, deparamo-nos atualmente com um ambiente online com uma infinidade de conteúdos, fidedignos ou não, propício para circulação de informações fal- sas (Volkoff, 2000, p. 31;”title”:”Pequena história da desinformação – do cavalo de Tróia à Internet”,”t ype”:”book”},”uris”:[“http://www.mendeley.com/ documents/?uuid=a037a8af-7fa5-43b4-b12b-1167fa937 85a”]}],”mendeley”:{“formattedCitation”:”(Volkoff, 2000 Brito, 2015; Zhang & Ghorbani, 2019; Esteves &

Sampaio, 2019).

As informações enganosas e danosas chamaram a atenção nos últimos anos por não serem um fenómeno isolado e sim o oposto, vários países ao redor do globo enfrentam a problemática dos seus cidadãos tomarem decisões importantes baseadas em mentiras, o que re- presenta uma ameaça eminente aos ambientes demo- cráticos. Criou-se uma espécie de realidade paralela com base em informações manipuladas e falsas que é fomentada pelo ambiente digital e denominada por alguns autores de “pós-verdade” (Esteves & Sampaio, 2019; Cooke, 2018; Wardle & Derakhshan, 2017).

A pós-verdade se refere a “um tempo onde mais do que a verdade, importam os laços afetivos que se estabele- cem entre as informações veiculadas e os indivíduos.” (Prior, 2019, p. 90), portanto está relacionada com uma valorização de informações convenientes ao contexto dos indivíduos e não necessariamente aos factos. Esta é uma realidade que dificulta o diálogo diverso e reforça interpretações como uma verdade absoluta imutável, por isso a pós-verdade pode criar um ambiente de con- flito e uma guerra de narrativas (Prior, 2019; Silva & Vi- deira, 2020; Santaella, 2018; Esteves & Sampaio, 2019; Ceppas & Rocha, 2019; Silva & Santos, 2022).

Custa entender as razões pelas quais a desinformação e a pós-verdade tornaram-se grandes problemas numa


image

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

  1. – A Short Guide to the History of ‘Fake News’ and Disinformation: A Short Guide to the History of ‘Fake News’ and Disinformation: A New ICFJ Learning Module | International Center for Journalists

    era a qual possuímos informações do mundo inteiro na “palma das mãos”. Isto poderia se tornar um para- doxo, mas deixa de o ser quando nos questionamos a que tipo de informações nos referimos, que tipo de in- formações está ao nosso real alcance?

    Wardle & Derakhshan (2017, p. 5) denominam o uni- verso crítico da informação no ciberespaço como “de- sordem informativa” e o divide em três categorias (mis-information, dis-information e mal-informa- tion), sendo que este conjunto de informações circu- lam nas redes de maneira massiva e podem até ser en- tregues de forma customizada.

    “Mis-information: Informações incorretas que são partilhadas sem intuito de causar danos, Dis-information: Desinformação, criadas e partilhadas com intuito de causar danos e Mal-

    -information: Mal-informação que se refere às informações verdadeiras que são privadas e são levadas ao público com intuito de difamação.” (Wardle & Derakhshan, 2017, p. 5).


    Com o desenvolvimento de algoritmos capazes de fil- trar e personalizar o aparecimento de conteúdos que tenham relação com os dados do perfil do usuário, o ambiente digital possui várias espécies de bolhas ou camaras de eco que contribuem para a pós-verdade. São como espaços de discursos homogéneos, que re- forçam um sentido de pertença demonstrando outros milhares de perfis com as mesmas ideologias, reli- gião, ideias e assim por diante. Torna-se um espaço rentável para as empresas a partir do momento que direciona seus produtos e serviços especificamente para o seu público-alvo e ao mesmo tempo permite o encontro de pares, como uma comunidade. As infor- mações que circulam por estes espaços nem sempre são fidedignas, mas cumprem com os discursos acei- tos pelo grupo (Patino, 2019; Cooke, 2018; Arguedas et al., 2022; Bruns, 2021).

    Por outro lado, é facto que estes algoritmos não são os únicos culpados, pois essa personalização pode ser alterada através de buscas diversificadas, ou seja, não se pode afirmar a total inflexibilidade dessas bolhas. Pode-se sim perceber que, nessa circunstância, é cria-

    da uma zona de conforto a qual sua “quebra” já não é interessante para os usuários (Patino, 2019; Cooke, 2018; Wardle & Derakhshan, 2017; Arguedas et al., 2022; Bruns, 2021).

    Neste cenário problemático, podemos aqui elencar al- gumas situações práticas que destacam a complexidade dos fenómenos e a necessidade latente de combatê-los. A área da saúde, por exemplo, carrega acontecimen- tos preocupantes envolvendo a desinformação e a pós-

    -verdade. A pandemia foi sem dúvidas um marco para alertar que a desinformação pode colocar até a vida das pessoas em risco. Podemos citar as informações fal- sas virais sobre supostos tratamentos para a COVID19, como uso de ivermectina23 e até indicação do consumo de cinzas de vulcão e dejetos de vaca4, que foram utili- zados mesmo com a contraindicação científica.

    De referir ainda situações antidemocráticas, fomen- tadas por desinformação e pós-verdade, na política de vários países. Como é o caso da invasão do capitó- lio5, após a vitória do presidente Joe Biden, nos Esta- dos Unidos. Invasão essa, estimulada pelo candidato derrotado Donald Trump que, por sua vez, já esteve envolvido por diversas vezes com a divulgação de in- formações falsas para manipular opinião pública. Os invasores reivindicavam uma suposta fraude nas eleições com base em teorias da conspiração dissipa- da durante toda a campanha pró-Trump, apontando a culpa da suposta fraude para satanistas, comunis- tas e republicanos fracos. Apesar de todo o transtorno causado pela invasão violenta do grupo pró-Trump no capitólio, nenhuma prova concreta foi apresentada e a eleição, que ocorreu de forma democrática, perma- neceu válida.

    No Brasil, dentre inúmeras situações, destacamos o ocorrido em 7 de setembro de 20216. Após uma repeti- ção de narrativas do presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores para manipular a opinião pública, atra- vés de informações manipuladas e falsas7, em prol a descredibilização do sistema eleitoral brasileiro e do fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), ocorreu um manifesto no dia em que é comemorada a independência do país. Com cerca de 125 mil pessoas apoiando a pauta antidemocrática, a ação contou com


    image

  2. – “Kit covid” no Brasil: https://jornal.usp.br/ciencias/tratamento-precoce-e-kit-covid-a-lamentavel-historia-do-combate-a-pandemia-no-brasil/


  3. – Uso de ivermectina contra covid nos EUA: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-10-10/boato-sobre-a-covid-19-esgota-a-ivermectina-nos-estados-unidos.html


  4. – Consumo de urina e fezes de vaca (índia), cinzas de vulcão (Filipinas), cocaína (França): https://super.abril.com.br/saude/7-tratamentos-bizarros-e-sem-qualquer-

    -comprovacao-cientifica-para-covid-19/


  5. – Invasão do capitólio nos EUA: https://www.nytimes.com/2021/01/09/us/capitol-rioters.html


  6. – As ameaças de Bolsonaro no 7 de setembro: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58479785


    S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

  7. – Bolsonaro investigado por fake news Moraes torna Bolsonaro investigado por fake news no STF | VEJA (abril.com.br)

    discurso acalorado do próprio presidente, que proferiu insultos ao presidente do Supremo e afirmou que as eleições brasileiras são uma farsa.

    Já em 2022, com a proximidade da nova eleição pre- sidencial, o ataque as urnas disparam a medida que o candidato a reeleição decresce nas pesquisas de in- tenção de voto. Um dos motivos que gera confusão no assunto é que esta narrativa da fraude nas eleições, fo- mentada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoian- tes, foi criada a partir de parte de um facto. Bolsonaro utiliza a informação de que hackers entraram no sis- tema do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)8 para criar dúvida na fiabilidade das urnas eletrônicas. Entre- tanto, o facto é que os hackers conseguiram invadir o sistema interno do TSE, sistema que não tem relação com as urnas eletrônicas. Hackers nunca invadiram o sistema de urnas eletrônicas brasileiro e existem fac- tos que comprovam isso. Factos esses que o candidato e seus apoiantes omitem em seus discursos.

    Em primeiro lugar, as urnas eletrônicas não têm aces- so a internet9, portanto não é possível nenhuma inter- venção em rede que possa hackear esse sistema de voto. Depois, ao final de toda sessão eleitoral é impresso um Boletim de Urna com a computação de todos os vo- tos10, ou seja, a urna também dispõe de conferência impressa de votos. Outro ponto importante é que as acusações de erros matemáticos das urnas já foram es- clarecidas por especialistas que, por sua vez, destaca- ram a falta de rigor científico nas metodologias destas suposições de fraude11. Além disso, existem testes pú- blicos para a testagem das urnas eletrônicas, os quais possibilitam que os participantes conheçam melhor o seu sistema interno e externo e tentem ataca-lo12. É importante relembrar ainda que as acusações de fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras nunca foram comprovadas13 e que o próprio Bolsonaro defendeu as urnas eletrônicas em 1993, reivindicando a possibili- dade de fraude do voto no formato impresso14.

    Mesmo diante de todos estes factos e da ausência de provas concretas, circula nas redes sociais inúme- ras informações falsas e manipuladas15 que colocam em causa a confiança no sistema eleitoral brasileiro,

    órgãos competentes do país e, sobretudo, incenti- vam a polarização entre a população. À vista disso, relembramos o alerta de Hanna Arendt sobre a capa- cidade de soberania do poder político face a verdade (Arendt, 1995), capacidade que nos últimos anos inte- gra a tecnologia para sua própria manutenção.

    Situações como essas conduzem ao questionamento de como enfrentar algo complexo como a desinfor- mação e a pós-verdade, pois a sociedade está exposta a esta manipulação, que parece não ter previsão para cessar (Delmazo & Valente, 2018). Partindo destas cir- cunstâncias, o ensino crítico e emancipador torna-se basilar para que as pessoas possam, através da educa- ção, criar resistência às consequências sombrias que podem ser obtidas através destes fenómenos.


    image


    image

  8. – Hackers no TSE: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/08/entenda-inquerito-do-ataque-hacker-ao-tse-utilizado-por-bolsonaro-para-questionar-urnas.shtml


  9. – Urnas não têm acesso a internet: https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Junho/urna-eletronica-equipamento-nao-possui-conexao-com-a-internet-1


  10. – Boletim de Urna: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58007138


  11. – Matemática e urnas: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58007138


  12. – Teste público Urna: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2012/testes-publicos-de-seguranca-do-sistema-eletronico-de-votacao


  13. – Fraudes não comprovadas: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Outubro/serie-desvendando-a-urna-ja-foram-comprovadas-fraudes-na-urna-

    -eletronica


    S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

  14. – Bolsonaro defende as urnas eletrônicas: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62311882


  15. – Fake news sobre as urnas: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2020/11/18/e-fake-que-video-prove-que-e-possivel-fraudar-urna-eletronica.ghtml

Paulo Freire e o

seu legado de ensino crítico e emancipador

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Já no seu primeiro livro, “Educação como prática da liberdade” (Freire, 1967), Paulo Freire esclareceu a importância da luta contra uma domesticação através da educação. Segundo o patrono da educação brasileira, esta domesticação educacional é proposital para que as pessoas continuem cumprindo com as determinações do sistema em que vivem, sem compreendê-lo de forma aprofundada ou crítica. Há uma vasta escassez de conhecimento e crítica que contribuem para o domínio das massas e sua quietude (Freire, 1967; Freire, 2003). Dessa forma, o sistema pode continuar, sem grandes revoluções, privilegiando uma minoria capaz de subjugar a maioria para benefício próprio e para a permanência desse sistema opressor (Freire, 1967; Freire, 2003).

“Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto” (Freire, 1967, p. 43).


Esta incompreensão do contexto o qual vive-se é algo nocivo para a sociedade, pois uma cidadania plena será viabilizada apenas com a conscientização genuína do “eu” e de onde esse indivíduo está inserido (Freire, 1967). A partir do momento em que entendemos o nosso lugar no mundo, passamos a observar as nossas verdadeiras necessidades, ou o porquê delas não serem atendidas (Freire, 1967). Passamos a entender a

luta das gerações passadas e as lutas as quais precisam de mais força, ou ainda, as lutas as quais são farsas ou apenas subterfúgios para esconder uma realidade. A partir do momento que entendemos o nosso lugar no mundo, passamos a fazer parte dele verdadeiramente, com nossas decisões, articulações e criações (Freire, 1967). Observando estas ideias do autor, somos capazes de acreditar que estas são obras de 2022. Mesmo considerando o período turbulento o qual o Brasil passava em 1967, que também exigia um olhar crítico sob a educação do país, podemos trazer estas constatações para hoje. Acreditamos que a luta contra a desinformação e a pós-verdade também estão relacionadas com esta domesticação referida pelo autor.

Nesse sentido, Freire defende, de forma recorrente em suas obras, que uma verdadeira transformação social depende de uma educação crítica e emancipatória (Freire, 2013; Freire, 1997; Freire, 2003; Freire, 1967). Este deverá ser o alicerce de qualquer ensinamento em sala de aula: uma educação que não se baseia apenas em depositar matérias e sim no diálogo, na aprendizagem mútua de professor e aluno e na capacidade crítica (Freire, 2003; Freire, 1997).

Para isso, é preciso considerar a realidade que os indivíduos estão inseridos de forma a compreender as circunstâncias do seu cotidiano e adequar o ensino a esse contexto. Os professores precisam estar abertos a troca em sala de aula, visto que a evolução pedagógica também inclui a interação entre todos os atores do ambiente escolar. Esta troca poderá ser uma forma de enriquecimento de ambas as partes, com partilha de experiência e de conhecimento (Freire, 2013; Freire, 1997; Freire, 2003; Freire, 1967; Freire, 2001). O autor refere a importância do diálogo, da pesquisa, da inquietude, da sensibilidade e coerência em sala de aula, fatores que quando atribuídos aos professores, significam mais do que uma ação, significam vocação (Freire, 1997).

Paulo Freire também argumenta sobre uma impermanência necessária para o estudo e o aprendizado: manter a curiosidade, não dissociar teoria da prática e estar sempre aberto para críticas (Freire, 1981). Além disso, todas as pequenas conquistas educacionais fazem parte do percurso para uma cidadania crítica. O autor reforça, por exemplo, que a alfabetização é uma “prática reacionária” e que, apesar da repetição das sílabas para a alfabetização não ensinar os direitos do indivíduo, é um caminho para tal (Freire, 1981).

Com isso, Freire reconhece e afirma a educação crítica como um processo, pois se trata de uma busca

continuada de conhecimento, razões, padrões, interesses, trocas e crítica (Freire, 2013; Freire, 1997; Freire, 2003; Freire, 1967; Freire, 2001). Este não é um processo fácil, o autor inclusive o relaciona, na aclamada obra “pedagogia do oprimido, com um parto: “Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente.

Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem expectadores ou autores. Entre atuarem ou terem a ilusão que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo. Esse é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar. A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.” (Freire, 2003, p. 35).


O processo educacional deve preparar o indivíduo para tornar-se um cidadão capaz de tomar decisões que agreguem ao convívio e a evolução social. Dessa maneira, a educação crítica, não se refere ao ensino voltado apenas a aprendizagem de funções práticas, faz parte de um projeto social que visa a libertação daquele que aprende (Freire, 2003; Freire, 1997; Freire, 1981; Freire, 1967). Como benefício, teremos cidadãos mais capacitados para o entendimento do seu papel e do seu contexto. Além disso, “um cidadão consciente entra no processo histórico de forma mais crítica e evitando os fanatismos” (Freire, 2003, p. 24).

Conforme referido anteriormente, as situações envolvendo a desinformação e a pós-verdade não são fenómenos exclusivos de algum país, o Brasil não é o único refém deste caos da informação. Fazemos aqui uma observação direta a esta realidade principalmente pela trajetória do próprio Paulo Freire que, por seu turno, estudou e descreveu profundamente a realidade da educação brasileira em suas obras. Logo, através da ciência social e humana podemos nos questionar se, por exemplo, o sistema educacional brasileiro compreendesse, maioritariamente, a crítica como

sustentáculo primordial, teríamos 125 mil pessoas nas ruas a protestar a favor de ações antidemocráticas no ano de 2021? Seriam essas mesmas pessoas plenamente críticas e conscientes sobre o que é um sistema ditatorial ou não?

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Refletimos se este estado pode ser fruto de um sistema educacional que ainda carece de crítica e, apesar de esforços pontuais que podem ser feitos, se uma mudança estrutural significativa poderá ser viabilizada. De acordo com Freire, (2003) a carência de uma educação crítica e emancipadora não interessa ao sistema, pois “o opressor sabe muito bem que esta “inserção crítica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode lhe interessar” (Freire, 2003, p. 39), portanto poderemos ter um desafio ainda maior para defender a pauta de mudanças estruturais e eficientes a longo prazo.


image

Considerações

finais

Este artigo procurou traçar, de forma breve, aspetos importantes para a compreensão do cenário preocupante que envolve a desinformação e a pós- verdade. Buscamos sublinhar a ameaça que esses fenómenos representam para democracias e algumas situações que demonstram na prática as consequências desse período informacional turbulento.

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Reconhecemos que a luta contra a desinformação e pós-verdade se trata também de consolidar respeito e empatia à visão do próximo, já que “a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada um a respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas.” (Morin, 1999, p. 102).

Procuramos bases nas obras de Paulo Freire para encontrar explicações ou caminhos possíveis nesta conjuntura, o que revelou as ideias atemporais do autor. Notamos que as ideias de educação de Paulo Freire podem nortear estratégias pedagógicas a favor da melhoria de práticas. Em sala de aula é preciso desenvolver padrões de ensino mais flexíveis, inclusivos e direcionados que poderão contribuir para uma aprendizagem adequada aos desafios atuais. Por conseguinte, apesar de não representarem uma panaceia para os problemas da educação, já que a educação se trata de um sistema que depende e é de responsabilidade de um conjunto de atores, professores engajados são atores fundamentais num processo educativo crítico.

Percebemos a complexidade e dificuldade de lidar com a desinformação, assim como a possível dificuldade de transformações profundas para uma educação crítica e libertadora. Não obstante, acreditamos que a luta por uma educação crítica faz parte da trajetória daqueles que a salvaguardam como uma poderosa ferramenta de cidadania. Por esta razão, o legado das obras de Paulo Freire fundamenta teorias e práticas que podem ser utilizadas como horizonte e reflexão para o caminho de um sistema educativo mais justo e voltado a crítica e libertação.


image

Referências


Arendt, H. (1995). Verdade e Política. Relógio D’Água. Arguedas, A. R., Robertson, C. T., Fletcher, R.,

& Nielsen, R. K. (2022). Echo Chambers, Filter Bubbles, and Polarisation : a Literature Review (p. 42). Reuters Institute for the Study of Journalism. https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/ echo-chambers-filter-bubbles-and-polarisation- literature-review

Brito, V. de P. (2015). Poder informacional e desinformação.

Universidade Federal de Minas Gerais.

Bruns, A. (2021). Echo chambers? Filter bubbles? The misleading metaphors that obscure the real problem. In Hate Speech And Polarization in Participatory Society (pp. 33–48).

Buckingham, D. (2019). The Media Education Manifesto.

Polity Press.

Ceppas, F., & Rocha, R. R. (2019). Ensino de filosofia na era da pós-verdade. O Que Nos Faz Pensar, 28(45), 288–301. https://doi.org/10.32334/ oqnfp.2019n45a689

Chinn, C. A., Barzilai, S., & Duncan, R. G. (2021). Education for a “Post-Truth” World: New Directions for Research and Practice. Educational Researcher, 50(1), 1–10. https://doi. org/10.3102/0013189X20940683

Cooke, N. A. (2018). Fake News and Alternative Facts - Information Literacy in a Post-Truth Era. ALA Editions. Delmazo, C., & Valente, J. (2018). Fake news nas redes sociais online: propagação e reações à desiformação em busca de cliques. Media &

Jornalismo, 18(1), 16.

Esteves, F., & Sampaio, G. (2019). Viral: A Epidemia de Fake News e a Guerra da Desinformação (1st ed.).

Freire, P. (1967). Educação como prática da liberdade (Vol. 1).

Paz e Terra.

Freire, P. (1981). Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos (5a). Paz e Terra.

Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.

Freire, P. (2001). Carta de Paulo Freire aos professores. 15(42), 259–268.

Freire, P. (2003). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.

Freire, P. (2013). Ação Cultural para Liberdade e outros escritos

(16a). Paz & Terra.

Morin, E. (1999). Os Sete Saberes Necessarios a Educação do futuro

(2nd ed.). UNESCO. www.cortezeditora.com.br Patino, B. (2019). A civilização do peixe vermelho. Gradiva -

Publicações, Lda.

Prior, H. (2019). Mentira e política na era da pós-

verdade: fake news, desinformação e factos alternativos. Comunicação Digital: Media, Práticas e Consumos, 75–97. https://doi.org/https://doi. org/10.26619/978-989-8191-87-8.4

Santaella, L. (2018). A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Dfle Cores.

Silva, V. C. da, & Videira, A. A. P. (2020). Como as ciências morrem? Os ataques ao conhecimento na era da pós-verdade. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 37(3), 1041–1073. https://doi. org/10.5007/2175-7941.2020v37n3p1041

Silva, M. M. S., & Santos, L. A. (2022). Educação na Era da Pós-Verdade : Como Lidar Com Esta Realidade ? Práticas Comunicativas, Organizações e Educação. Atas Das VIII Jornadas Doutorais Do CECS, 127–141.

Volkoff, V. (2000). Pequena história da desinformação – do cavalo de Tróia à Internet. Editorial Notícias.

S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

Wardle, C., & Derakhshan, H. (2017). INFORMATION DISORDER : Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. https://rm.coe. int/inf orma tion- disorder-toward- an-interdi sciplinar y-fr amew ork -f or- researc/168076277c

Zhang, X., & Ghorbani, A. A. (2019). An overview of online fake news: Characterization, detection, and discussion. Information Processing and Management, 126(1), 21. https://doi.org/.1037//0033- 2909.I26.1.78

Article Metrics

Metrics Loading ...

Metrics powered by PLOS ALM

Apontamentos

  • Não há apontamentos.


Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 License.

e-ISSN 1647-2144 | Publicação contínua semestral |Creative Commons Attribution (BY-NC-SA 4.0) | ESE de Paula Frassinetti | Apoio 

Indexação: DOAJ | ERIHPLUS | Latindex catálogo 2.0MIAR |QOAM |QualisCapes | Genamics JournalSeek |InfoBase Index | REDIB | Google Scholar Metrics (GSMIndex Copernicus International|SJIF Journal Rank|OpenAire | OEIOpen Science Directory | ROAD | Crossref |Copac (Reino Unido)|Ulrich's Periodicals DirectorySUDOC (França)OAIster |RCAAP | OpenAireMir@belSherpa Romeo